Terça-feira, 19 Março

«Human Flow – Refugiados» por Jorge Pereira

Numa das imagens mais poderosas deste Human Flow – Refugiados, e recorrendo a um plano plongê absoluto, um tigre vagueia desorientadamente dentro de uma jaula na Faixa Gaza, como que demonstrando como se sente o povo local nesta zona ladeada por um enorme muro que serve de assinatura ao regime de Apartheid “por questões de segurança” que o estado de Israel impõe à Palestina, transformando-a num verdadeiro gueto civilizacional. Este não é o único muro da “vergonha” e durante 2h20 minutos veremos objetos semelhantes nos EUA e na Hungria, para não se pensar que isto é apenas uma questão do Médio Oriente que o Ocidente, ou em particular a nossa Europa, está imune.

Curiosamente, esse mesmo tigre é o único caso de verdadeiro sucesso neste envolvente, impactante e verdadeiramente apaixonado trabalho do arquiteto, artista plástico, pintor, documentarista e ativista social Ai Weiwei, um dissidente chinês que bem sabe o que é ser um refugiado, ou seja, alguém que sai para um país estrangeiro por motivo de guerra, desastre natural, perseguição política, religiosa, étnica, ou climática, como é frequente nos dias que correm em África.

Esse tigre, que chegou a Gaza através de um dos túneis secretos e ilegais que ligam Gaza ao Egito, não conseguiria viver naquela zona, tendo sido facilitada a sua saída do local e o transporte para a África do Sul, com a ajuda de um patrocinador e a intervenção de quatro territórios diferentes. Notavelmente, este animal acaba por ter mais sorte que qualquer outro habitante da região, restringido a um mundo separado por uma barreira que apenas facilita as novas gerações (de israelitas e palestinos) a fomentarem mais clichés e estereótipos sobre cada um dos lados da barricada, separando-os ainda mais.

Mas os refugiados palestinos são apenas um dos focos deste trabalho que viaja por mais de 20 países, apresentando tanto as dificuldades que os refugiados encontram nas suas longas travessias, na suas próprias decisões de sair dos seus países (ninguém sai de ânimo leve, diz alguém a certo ponto), e a forma como são recebidos nos mais variados locais, como Turquia, Alemanha, Jordânia, Macedónia, Grécia, França ou Reino Unido. Em alguns casos, falamos mesmo de refugiados “crónicos”, como os que vemos na fronteira com a Jordânia, local que ganhou a dinâmica de uma economia própria. Noutros, casos extremamente recentes e um pouco desconhecidos, como a perseguição em Myanmar aos Rohingya.

Munido de imagens fascinantes mas extremamente tristes e miseráveis (veja-se a estranha beleza estética de Mossul a arder em contraste com a verdadeira degradação da vida de quem lá está), e com particular destaque para as recentes crises humanitárias geradas pelos conflitos no Iraque e na Síria, Human Flow foge em todos os sentidos da linguagem televisiva dos documentários, dando – em particular pelas frequentes imagens captadas por drones – uma imagem extremamente alarmante e urgente da verdadeira dimensão (enormíssima) dos campos de refugiados, onde locais como The Jungle (A Selva), em Calais, demonstram verdadeiras vergonhas humanas que serão vistas no futuro como locais tão trágicos de memórias coletivas como os campos da morte durante a 2ª Guerra Mundial.

Munindo-se de todas as artimanhas cinematográficas possíveis, onde não falta um Iphone que funcionar como uma extensão do próprio braço de Wei Wei, e diversos travelling shots absorventes, o cineasta viaja assim pela tragédia humanitária e civilizacional que assola o nosso planeta, adicionando ainda pequenas frases poéticas como introdução a cada um dos casos, e legendas com as manchetes de diversas publicações da comunicação social que servem de adereço explicativo a cada um dos casos.

Nada escapa à objetiva de Wei Wei, dos casos gerais aos particulares, e até ele – naquilo que se pode considerar o elemento de maior distração em relação ao tema – aparece em cena, como que tentando mostrar que está na mesma posição destas vítimas, embora se saiba que a qualquer momento ele poder sair e viajar para qualquer festival de cinema, enquanto os outros ficam no mesmo local. Ainda assim, algo sobressai na sua abordagem: a individualidade destes homens perde-se num conceito generalizado, o estatuto ou cognome de refugiado, bem como a sua nacionalidade (são o quê?). E até a aparente aleatoriedade das imagens que surgem em cena torna-se coerente no final, pois no meio desse deslocamento temos gente sem rumo ao sabor da tragédia.

Em suma, estamos perante um trabalho de forte impacto e absolutamente necessario, uma espécie de instalação tão artística como trágica de um nome forte da arte mundial que decidiu sujar as mãos e meter-se à estrada com uma companhia que poucos desejam ter por perto. A razão era mais mais que válida. Estamos perante o maior deslocamento de pessoas desde a Segunda Guerra Mundial e ninguém sabe como resolver isso para além de construir barreiras ou deixar as pessoas em stand by.


Jorge Pereira

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