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Leto: “nunca estivemos aqui!”. O rock faz-se para poucos

 Sem romances escandalosos, as biografias de cantores de rock seriam inúteis.”

Viajamos para a cidade de Leninegrado, década de 80, ainda agarrada às sombras de União Soviética, a Rússia sob o selo da Guerra Fria, “vencida” pelo medo constante do “veneno capitalista” do Ocidente. A juventude inquieta aí residente anseia mais que tudo se exprimir, cautelosos e metódicos de forma a não inserem-se nas ofensas de um regime (caindo nos poços da “traição patriota”), desejando sobretudo o de não viver no dito Ocidente, mas em criar um “terceiro espaço”.

A coexistência nesse nenhures imaginário é materializado em Leto, a nova “provocação” do cineasta russo Kirill Serebrennikov que ocorre graças ao convite de uma personagem ocasional. Essa, que guia-nos por uma fantasia existencial da mesma forma que o poeta Vergil conduziu Dante para os becos mais profundos do Inferno. Esta, mais um adereço cênico que um peão da narrativa, funciona como um Schrodinger, um catalisador de uma realidade paralela, despertada por singles ocidentais que contagiam todo o espaço detido pelo realismo encenado. David Bowie (All the Young Dudes), Iggy Pop (Passengers), Talking Heads (Psycho Killer), T-Rex (Children of Revolution) ou Lou Reed (Perfect Day), mais que canções ao serviço da banda sonora, são um sopro de vida encomendado que transforma a intriga, por minutos, numa parábola musical. Diríamos que é punk no puro estado narrativo e quiça, visual, mas esta personagem atropela-nos, relembrando que tudo isto testemunhado “Isn’t just happen“. Estas realidades paralelas são impressões de personagens incapacitadas em estabelecer uma expressão clara e evidente no seu meio social.

Repressão ideológica? Sim, a mensagem é de fácil leitura: “The television man is crazy. Saying we’re juvenile delinquent wrecks. Man, I need a TV when I’ve got T. Rex“, excerto “rasgado” da referida música de Bowie, trecho que explícita a razão de Kirill Serebrennikov dar voz, ou antes emoção, à Geração X, aquela que coabita com os autoritários “velhos do Restelo”. Sonham em tocar rock, porém, impossibilitados de tal, criam algo que não o é. E a segurança de permanecer intacto num país, por si, saudosista do sovietismo rijo e “glorioso”. “A preguiça faz com que evite problemas”, é dito a certa altura, a procrastinada luta inexistente, a resistência invisível que se refugia em notas mudas, tocadas numa melodia transvestida.

Esse rock que não é rock, mas que pretende ser rock, funciona como disfarce e alude à natureza desta produção em constante embate com o seu formato. A realidade é invadida por essa inclusão e as letras de duplo sentido dos artistas transportam-nos para a importância desse mesmo rock (sim, podem incluir aqui um filme saudosista).

Concretizado num teor monocromático intercalado por cores que experienciam uma visão de fora, neste registo há muito a dever a Wim Wenders e ao seu Asas do Desejo, não apenas a coloração e a forma como se brinca com as divergentes tonalidades, mas pelo esboçar da folia como uma libertação dos nossos medos sociais. No final, percebemos sorrateiramente que Serebrennikov fez uma cinebiografia.

Enganado, o espectador pergunta: a sério? Isto para salientar que longe de qualquer régua e esquadro do subgénero, Leto responde com a mínima intenção de criatividade que é possível remodelar o apelidado e maldito biopic. Tal como o rock que não é rock e que passa por ele, o filme tem a tendência de passar por algo para realmente ser outra coisa. Somos enganados, sim, mas nem sempre a mentira nos prejudica.