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«Jusqu’à la garde» (Custódia Partilhada) por André Gonçalves

O ator tornado realizador Xavier Legrand segue a sua curta-metragem Avant Que de Tu Perdre (nomeada ao Oscar) com a sua primeira longa-metragem: Jusqu’à la guarde, mantendo aqui as personagens da história anterior. Se desconhecia o prólogo até agora (como eu), não se preocupe: pode sair da sala escura ainda mais aterrorizado perante esta maquinação praticamente perfeita de uma história que não precisa de legendas para indicar que é baseada numa história verídica (ou em várias, melhor dizendo). E pode parar de ler aqui, dirigir-se imediatamente à sala de cinema mais próxima, e voltar então depois ao texto. 

Começamos com uma juíza no seu gabinete, entretanto chamada pela escriturária para uma audição. O caso que esta irá escutar prende-se com a custódia partilhada do título entre um casal. Ela somos nós, e Legrand exponencia este efeito na sua câmara, encompassando cada uma das partes de cada vez, dando tempo de antena para a versão dos factos ser partilhada com o espectador. A juíza, a certo ponto, coloca a questão de quem está a mentir mais, dado que nenhuma versão sairá 100% verdadeira, sobretudo quando está em causa a guarda de um filho. O que se segue é difícil de descrever, pois o realizador faz questão de continuar a mostrar um ambiente tenso nesta família, em que a presença do “outro” (como é chamado o pai) é um tanto desconcertante e até capaz de gerar empatia, perante todas as tácticas de defesa maternal apresentadas (mudar de casa, de telemóvel, ocultar o paradeiro desta ao ex-chefe de família). É uma jogada que esconde, vamo-nos apercebendo, uma bomba-relógio capaz de levar o filme do drama ao terror doméstico, sem nunca verdadeiramente se reduzir a um dos géneros. 

Convém mesmo frisar o quão esta abordagem de “deixar a ação ir mostrando o que estamos habituados a ver instantaneamente no cinema atual” funciona em prol do filme. Nas mãos erradas, sem saber o que fazer, Legrand poderia ver os seus planos acusados de exibicionistas, sobretudo de uma crítica que possa rejeitar tamanhos talentos prodígios à cabeça. É prova que estamos perante verdadeiro talento (premiado aliás justamente no Festival de Veneza com o Leão de Prata) que sempre que vemos Legrand não mostrar, apenas implicar, assinalando meros gestos para que a nossa experiência humana consiga mapear o resto, é com motivo. Faz parte, quer do problema de comunicação aqui presente, quer também do jogo de escondidas, que eventualmente chega a alerta vermelho. Um deles, um ângulo voyeurístico de baixo de um cubículo de uma casa de banho, serve para mostrar ao espectador algo que a personagem não conseguirá contar à frente da câmara aos seus familiares, mostrando precisamente o quão fragilizada está também a relação destas pessoas entre si. Outro, numa festa, mostra o efeito de pânico de uma mensagem de telemóvel, novamente sem diálogos, e recusando novamente mostrar o óbvio – neste caso, a dita mensagem – para a partir das ações das personagens, gerar uma tensão crescente.

Não é só a câmara que faz maravilhas, mas a direção de atores acoplada a umas farpadas fortes do argumento extrai o melhor aqui do elenco central, especialmente do trio Léa Drucker, Denis Ménochet, e do estreante Thomas Gioria, no papel da criança “cobiçada” pelos dois adultos, e a direção de som que assume um papel fulcral no clímax e cala basicamente toda a plateia.

Pais, mães, filhos: acreditem no hype festivaleiro. Não há melhor filme em cartaz neste momento, mesmo que esta distinção possa durar só mais um dia ou dois, com a ameaça de saída do cartaz antecipada… 

André Gonçalves