Terça-feira, 19 Março

«The Florida Project» por Jorge Pereira

Se visualmente é fácil identificar a evolução do sentido estético de Sean Baker e do seu método de filmar desde que lançou em 2004 o drama Take Out, quando entramos em termos narrativos e foco nos lugares, os mesmos tiques e paixões do jovem irreverente – que foi para Los Angeles com o sonho de filmar o novo Die Hard, mas acabou por descobrir um cinema pessoal – mantêm-se. Analisando bem, as personagens dos seus filmes estão sempre – de alguma forma à margem, são membros de minorias sociais mal interpretadas, frequentemente estereotipadas, ou sub-representadas. Olhe-se para o imigrante chinês ilegal que tenta pagar uma dívida em Take Out, ou o vendedor de material contrafeito nas ruas de Nova Iorque de Prince of Broadway, ou a atriz de cinema porno que faz amizade com uma idosa em Starlet, ou finalmente os dois transexuais que na véspera de natal andam à procura de alguém pelas ruas de Los Angeles, em Tangerine.

Mas mais que essas figuras particulares que a objetiva de Baker parece celebrar, há outro elemento fulcral na cinematografia de um dos mais interessantes cineastas que os Estados Unidos ofereceram na última década: a geografia, os lugares em que tudo ocorre e a sua própria vida, que é transportada para as pessoas que os habitam, mas que também os condicionam.

Numa entrevista por alturas da estreia do fantástico Tangerine, Baker dava a entender que se afastava do conceito de gostar de falar pessoas de diversas culturas, mostrando antes que o seu exercício era outro. Primeiro ele apaixonou-se pelos espaços e depois tentava encontrar uma história que vivesse neles. The Florida Project – um referência ao projeto que Walt Disney tinha para a região da Flórida Central na década de 1960 – é o seu mais recente trabalho com esta génese, focando-se nos subúrbios de Orlando, bem às portas do mundo encantado da Disney World, onde acompanhamos um motel barato e a “fauna” que por lá pulula. Nessa “fauna”, destaque para as crianças, obrigadas a viverem no local devido às fracas condições financeiras dos seus agregados familiares disfuncionais.

Na verdade, o que Baker tenta fazer é uma verdadeira “justaposição de ter filhos a crescer em motéis” à porta do suposto lugar mais mágico e encantado do planeta: a Disney World.

Os miúdos, travessos – uma espécie de The Little Rascals modernos – longe desse mundo encantado, recriam-no em toda a sua existência, usando todo o espaço como um enorme recreio, uma casa de bonecas, onde qualquer objecto é usado como potencial brinquedo. Olhe-se para o uso que dão a uma ventoinha. Tudo para eles é um objecto à mão de semear para o seu mundo entre a imaginação, ingenuidade, descoberta e aventura. Para refletir o ambiente da zona, o trabalho na cenografia e na cinematografia foca as tonalidades vibrantes que por lá fazem história, com os roxos, lilás, laranjas, amarelos e azuis claros a serem usados e abusados para redefinir o espaço e as vidas intensas que por lá pairam, sem nunca esquecer a utilização de contrastes visuais que trespassam também a imagem de mais do que uma América a coabitar o mesmo espaço e de um mundo diferente entre adultos e crianças.

O director de fotografia, Alexis Zabé, que descreve o filme como “um sorvete de mirtilo com um toque azedo“, usa essencialmente a luz natural, não só para mostrar esses elementos numa forma neo-realista, onde o radiante sol por vezes nos cega, e a chuva nos “molha” de uma forma orgânica. A escolha de 90% do filme ser filmado em 35mm analógico, transmite também essa sensação verité, com o digital a ser usado para as cenas noturnas, às quais os céus da Flórida dão ainda um tom de fábula. Quando adicionado o uso das cores berrantes da cenografia e guarda-roupa, a palete do cinematógrafo oferece então uma visão mais fantástica ligada ao imaginário delirante das crianças, que vivem num mundo muito seu.

Na verdade, o seu trabalho visual reflete o misto das suas influências e colaborações no passado. Conhecido não só por colaborar em anúncios e videoclipes, como os de Pharrell Williams (Happy) e dos fortemente estilizados Die Antwoord (Fatty Boom Boom; Ugly Boy), o mexicano deu primeiro nas vistas num espesso trabalho a preto e branco chamado Temporada de Patos, no qual ajudava Fernando Eimbcke a mostrar o que um grupo personagens fazia para superar o tédio após a falta de eletricidade. Seguiram-se trabalhos com nomes como Carlos Reygadas, Adan Jodorowsky, Harmony Korine (as vibrantes cores remetem-nos também à sua cinematografia), e até a Jonas Cuarón, naquela curta –Aningaaq– que servia de complemento a Gravidade de Alfonso Cuarón.

Essa variedade de estilos, ajudou-o assim a construir esta obra de cariz realista, mas “pintada” de um jeito impressionista, tal como a região de Orlando é: uma porta para a magia, mas repleta de vidas marginalizadas cuja realidade é a pobreza.

Aliado a isso tudo estão ainda certas opções do realizador na forma de captar meticulosamente tudo, seja com a câmara estática, onde não faltam belos planos gerais e de conjunto (para contar a história dos lugares e das pessoas), seja com ela em movimento e na mão em perseguição das personagens, denotando-se uma apetência por focar as crianças (e ter o seu ponto de vista) quando os adultos estão perto, sendo estes muitas vezes cortados, como se fossem apenas figuras de corpo presente.

Já em termos de narrativa, e tendo em conta que esta obra afasta-se do arco narrativo habitual, a certo ponto Baker foca-se mais na relação de uma das crianças, Moonee (Brooklynn Prince), e da sua mãe, Halley (Bria Vinaite), a qual parece disposta a dar-lhe toda a liberdade do mundo para ela se divertir, permitindo muitas situações que a maioria da sociedade caracteriza como má educação, desmazelo e desprezo.

Com um sentido enorme de modernidade e contemporaneidade, onde não faltam os muitos artifícios da última geração, como os mobiles, as selfies, os nudes e o Twerking a estalarem nos sentidos dos mais velhos como amostras do liberalismo hedonista centrado na aparência, contracultura e egoísmo, Baker dá uma, duas, ou três dimensões às suas personagens, sem nunca cair no erro dos lugares comuns ou clichés, até porque se nota que há tanto nele carinho por essas pessoas, como sentido crítico, bem explicitado num dos finais mais emocionantes e eloquentes momentos que o seu cinema já ofereceu.

Uma nota final para o trabalho dos atores, com Price a oferecer a interpretação mais entusiasmante e emocionante de uma criança no cinema desde Quvenzhané Wallis em Bestas do Sul Selvagem, e Willem Dafoe, entre a dualidade de ter de gerir um negócio que tem de dar lucro (onde tem muitas vezes de ser o carrasco), e simultaneamente ser uma figura paternal, tanto para pequena Moonee, como para a sua mãe, como para todas as pessoas da zona (veja-se a cena em que ele expulsa um potencial pedófilo).

Por tudo isto, The Florida Project não é só o melhor filme de Baker, mas um dos melhores de 2017. Absolutamente indispensável.


Jorge Pereira

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