Muito se tem falado deste Black Phanter como uma oportunidade de dar tempo de antena a um super-herói negro numa megaprodução no grande ecrã, parecendo – às vezes – que ele é pioneiro nessa abordagem. E quando falamos de super-heróis, falamos de super-poderes, pois ao seu jeito, a história de grande heróis dos afro-americanos já chegou ao cinema, com Malcom X, Martin Luther King ou até Thurgood Marshall, curiosamente protagonizado por Chadwick Boseman.

Já no Universo das adaptações de comics a bem dizer, se é verdade que Spawn foi reduzido a um nicho de culto, Luke Cage ao streaming, e Falcon a um papel secundário de adereço na saga Vingadores, Capitão América e Homem Formiga, o mesmo já não se pode dizer de Blade, que conquistou os cinemas nas décadas de 1990 e 2000, com Wesley Snipes como figura de proa.

A grande diferença desta produção em relação à citada é que não é só é um homem negro que está na liderança dos eventos, mas que todo o elenco e a maioria dos lugares cimeiros na equipa técnica, também o são ocupados por afro-descendentes. Mais, a história passa-se entre os EUA e África, tem reflexos e ligações na própria história da raça, mas também em pontos universais dos tempos que correm, funcionando assim como uma alegoria em várias dimensões e uma fuga aos esterotipos – claro está, empacotada e vendida de forma industrial através da forma de cinema escapista e espectacular.

Nesse registo limitado que todos os filmes da Marvel têm, do verem o entretenimento como um fim absoluto – há que dizer que Black Panther é dos mais interessantes e conseguidos trabalhos da marca, não só pela técnica, que com suficiente criatividade nos oferece um visual extremamente rico e interessante, mas também no que toca a narrativa, ao balanço entre as relações das personagens, sem nunca esquecer uma mensagem política e social de unidade entreajuda entre povos (em detrimento de protecionismos), onde “se deve construir pontes e não muros”, e o inevitável humor.

Neste sentido, Ryan Cooglar (Creed) consegue balancear o tom frenético de cenas de ação, numa linguagem derivativa e por vezes demasiado próxima à dos videojogos, com os momentos mais dramáticos como nas tragédias grega (a reversão) e Shakespeareana, não só no triunfo espiritual perante as adversidades, mas também na presença dos chamados alívios cómicos, aqui entregues a Letitia Wright, no papel de Shuri, Andy Serkis como o vilão Ulysses, e Martin Freeman como o agente da CIA Everett K. Ross. Este trio não oferece apenas inteligência (Wright), anarquia (Serkis) e consciência política (Freeman), mas é a principal fonte do humor que o filme oferece.

No que toca a outras personagens, se Daniel Kaluuya (de Get Out) se revela o elo mais fraco e inconstante na sua transformação, Danai Gurira é a verdadeira “bomba” em termos de charme e força, ofuscando mesmo, quando está em cena, não só Lupita Nyong’o no papel da idealista Nakia, como Boseman – o nosso T’Challa/Black Panther.

Sobre T’Challa, temos de dizer que há bastante sapiência na forma como o ator aborda a personagem, bem longe da vivacidade, alguma arrogância e definitivamente sentido provocatório como o vimos no já citado Marshall. Aqui, como príncipe herdeiro do trono transformado em líder absoluto com enormes necessidades de “diplomacia”, Boseman entrega uma prestação segura, calma, contemplativa, mas que nunca perde a chama e o seu carácter místico, onde não faltam tantas dúvidas como certezas, e uma passagem ‘prática evolutiva, num crescendo tão emocional como racional.

Quanto a Michael B. Jordan, ator fetiche de Coogler, este consegue com os seus trejeitos de afro-americano criado no “Hood” tentar entrar num mundo que também lhe pertence, mas do qual está profundamente desenraizado – quer em termos na maneira de estar, agir, pensar e atuar.

Já tecnicamente, e apesar dos milhões envolvidos, denota-se uma ligação emocional no processo criativo do Universo Wakanda, que vai desde os cenários da cidade (afrofuturista e afropunk), à decoração de interiores (entre os elementos tribais do passado e a sua evolução longe das influências coloniais), passando pelo guarda-roupa, a banda-sonora e até na fotografia que acentua os tons e ambiente do continente africano, “em plena consonância com a diáspora africana“, num misto entre “a mitologia, a arte, a política, a ciência e a ficção científica” que se afasta do exotismo dos filmes postal.

O ex-líbris dessa representação de trabalho apaixonado é o guarda-roupa desenvolvido por Ruth E. Carter. Esta, em consonância com todos os elementos da direção artística, procura definir a moda afrofuturista do “El Dorado” africano, recorrendo a influências Masai, Suri, Himba, Turcana e Tuareg (nas tonalidades, adereços, bordados, formas/geometria das pinturas) para incutir – quando o deve fazer – um olhar urbano com uma veia punk afastada da afirmação política ou descuido – em entrevista, Carter confessou influências das linhas de Issey Miyake, o pensamento avant garde de Stella McCartney, e as formas de Gareth Pugh.

Em paralelo, surge também uma visão mais clássica nas figuras reais (veja-se Forest Whitaker, ou Angela Basset, cuja coroa tem influências zulus), distante do look progressista que as personagens mais jovens tendem em apresentar – um reflexo também do progresso do pensamento dos que pretendem uma ligação de Wakanda com o mundo.

O resultado final é deslumbrante, ainda mais sublinhado pelo maior brilho, contraste e saturação que Rachel Morrison, na cinematografia, aplica a grande parte do seu trabalho, fugindo assim ao padronizado mundo da fotografia “plana” do Universo Marvel, que procura uma maior coerência e consistência dentro e fora dos seus filmes, vistos mais como um pacote de obras que trabalhos individuais que se cruzam a determinado ponto.

Esse brilho e maior luminosidade que Morrison acrescenta, especialmente nas cenas diúrnas em que filmou com maior nebulosidade (mas também nas noturnas quando estava presente luz artificial), permitem ao espectador entrar de forma sugestiva nos espaços geográficos em que tudo se desenrola. Veja-se a nitidez das gotículas em contraste com as peles nas cenas de luta, ou, noutro registo, já no campo onírico, na fluidez com que regista o encontro “no além” entre T’Challa e o Pai, tudo sobre tons azuis, lilás e violeta, que transmitem não só um estado de delírio e meditação, mas também conforto, segurança e peso do legado – marcado ainda na paisagem africana com os vibrantes, luminosos e atentos olhos vigilantes de um par de panteras dispostas numa árvore.

Uma nota ainda para o trabalho da montagem, a quatro mãos, onde não falta o habitué (no cinema de Coogler) Michael P. Shawver e a já com experiência no Universo da Marvel, Debbie Berman (Homem-Aranha: Regresso a Casa). A dupla entrega um trabalho bem entrecortado, com especial destaque para uma cena filmada na Coreia do Sul (que parece estar apenas na narrativa para existirem cenas atraentes ao mercado asiático), em que o realizador teve no terreno um editor a cortar as imagens em tempo real para capturar todo o frenesim da sequência ao pormenor.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
black-panther-por-jorge-pereira Muito se tem falado deste Black Phanter como uma oportunidade de dar tempo de antena a um super-herói negro numa megaprodução no grande ecrã, parecendo – às vezes – que ele é pioneiro nessa abordagem. E quando falamos de super-heróis, falamos de super-poderes, pois ao seu...