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«Beuys» por Jorge Pereira

Sim, sou uma pessoa séria… mas também sou um clown.” Esta frase de Joseph Beuys, num encontro/entrevista com o  artista multidisciplinar Ernesto de Sousa [1], é aplicável à forma como o cineasta germânico Andres Veiel lida com o material que teve acesso (fotografias, áudios, vídeos, entrevistas) para, num documentário abrangente, mas não excecionalmente extenso, falar sobre a arte e as ideias (políticas, ecológicas, sociais e filosóficas) do carismático e controverso autor vanguardista alemão.

Numa entrevista que fiz a Veiel [2], este afirmou que o retrato que traça de Beuys era a de um homem “obcecado com as suas ideias, mas salvo pelo humor“. E isso é é o que podemos ver através da seleção cuidada que o cineasta faz do material, apresentando um grande orador com tendência para a provocação e teatralidade, transcrito logo nos primeiros segundos quando o próprio Beuys diz “isto aqui é como Hollywood“.

Mas nem só de risos se vive esta película, que passa também pelos momentos depressivos nos anos 50, onde as suas pinturas demonstram a negritude em que a sua alma caiu, pelo menos até ele voltar a explodir e ascender a figura incontornável do século XX, rodeada de misticismo e um intenso trabalho de marketing do próprio, quer através da sua figura e marcas de indumentária (o chapéu de feltro, o colete de pescador), quer através das suas “ações”/performances, sempre declaradas como uma forma de criar discussão política, social ou ambiental, especialmente depois dos anos 70, quando se tornou um dos fundadores do partido alemão Os Verdes.

Veja-se o seu trabalho I Like America and America Likes Me (1974), no qual se fecha num espaço com o Wall Street Journal, uma manta, e um coiote – figura mitológica para os nativos americanos, mas que para os europeus era uma praga a erradicar. O objetivo dessa “ação”, segundo ele, era que ao formar uma ligação com o animal ia ajudar os EUA a sarar as feridas raciais e económicas, até porque pela visão de Beuys a arte tinha uma função social e um poder curativo na sociedade [Beuys, o líder, o artista xamã].

Já a sociedade era vista como uma gigantesca escultura social que todos nós – como artistas que somos – tínhamos o poder de moldar. Para contrariar esse potencial artista que existia em cada um, a quem o talento representa uma obrigação, as sociedades reprimem através de mecanismos burocratizados de sistemas partidarizados que usam a competição e a busca agressiva pelo sucesso para abafar o potencial criativo do indivíduo (“A poluição ambiental avança lado a lado com a poluição dentro de nós“), o qual só poderá ser salvo através da arte (“Apenas a arte é capaz de desmantelar os efeitos repressivos de um sistema social senil“).

Recorrendo à arte e ao que ela representa para mostrar o autor, o homem e o idealista, Veiel – com toda a subjetividade inerente – visita diversos marcos históricos da sua vida que demonstram relevância para os seus trabalhos (e a extensão destes para a vida quotidiana).

O realizador – que pegando em muitas das ideias de Beuys vai brevemente falar do futuro e da nova Europa no seu próximo projeto teatral e cinematográfico – opta aqui por uma estrutura não linear ou cronológica para contar a sua história, preferindo seguir uma forma dispersa que assenta essencialmente no tom místico do artista, ou bullshit artist, como o crítico de arte Robert Starr o apelidou. Para isso, ele  recorre ao humor, seja este um reflexo de defesa, escapatória ou arrogância típica de alguém descrito por muitos como “muito à frente do seu tempo“.

Veja-se ainda a ligação dos alegados factos ocorridos a Beuys na 2ª Grande Guerra Mundial e a forma como ele depois explica a escolha de certos materiais para os seus trabalhos. Beuys vendeu diversas vezes a ideia que após o seu avião ser abatido pelos sovietes em 1943, algures na terra de ninguém na Crimeia, durante uma intensa tempestade de gelo, teria sido salvo por um clã de Tártaros nómadas que o cobriram de gordura e feltro para regenerar o calor no seu corpo. Ora, esses materiais que se tornaram correntes na sua prática, tinham regenerado o seu corpo, por isso também poderiam regenerar a arte.

A verdade é que anos mais tarde, especialistas e historiadores demonstraram que, na verdade, o incidente ocorreu, mas que Beuys teria estado em recuperação num hospital militar, sendo toda a narrativa do salvamento e recuperação apenas a criação de uma ilusão mística, com reflexos complexos na sua arte de transformação social, com enormes conotações metafóricas.

Neste processo, o cineasta joga com algum engenho com os elementos que dispõe, fugindo do registo meramente televisivo, embora se alimente a espaços de algumas “Talking Heads” para compensar falhas das imagens de arquivo (sem esquecer, as limitações em conseguir os direitos sobre algumas fotografias).

Assim, e apesar de oferecer um trabalho genuinamente pessoal, no seu todo este é incapaz de satisfazer em toda a sua plenitude, acima de tudo pela ausência de uma verdadeira meditação que entregue ao espectador a tarefa de tirar as suas próprias ilações sobre o objeto apresentado.


Jorge Pereira