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«Le Vénérable W.» por Aníbal Santiago

O monge budista Wirathu, líder do movimento ultranacionalista Ma Ba Tha, está no cerne de “Le Vénérable W.”, bem como o poder destrutivo do racismo e do ódio. Na capa da revista “Time” de 1 de julho de 2013, encontramos o rosto deste indivíduo em destaque, acompanhado pelo título: “The Face of Budhist Terror”. É uma descrição acertada, que provavelmente até peca por ser demasiado branda, ou não estivéssemos diante de uma figura abjecta, fria e assustadora, que não tem problemas em soltar um pérfido sorriso após proferir as mais variadas barbaridades, ou exibir um semblante carregado de convicção, algo demonstrado por diversas vezes ao longo do documentário. O “Bin Laden budista” é o elemento escolhido para encerrar a “Trilogia do Mal” de Barbet Schroeder, iniciada em 1974 com o documentário “Général Idi Amin Dada: Autoportrait”, ao qual se seguiu “L’avocat de la terreur” (2007), um trio de filmes que permite que o cineasta se envolva pelas entranhas das trevas.

Se o budismo aparece muitas das vezes associado a um modo de vida pacifista e tolerante, já os valores de Wirathu são diametralmente opostos. O seu apreço por Donald Trump não surpreende, tal como a sua capacidade de utilizar notícias falsas para incitar o ódio e a revolta, enquanto o seu sentimento anti-muçulmano conta com doses carregadas de malícia e xenofobia. Schroeder deixa este indivíduo falar à vontade, sem contrariá-lo ou limitar o seu discurso, enquanto ficamos a observar o mal a transcorrer a partir das palavras, os atos e os gestos do monge. É uma medida certeira, que permite deixá-lo a expressar as suas ideias ao mesmo tempo que desperta a nossa perplexidade e coloca em evidência os traços da sua personalidade. Note-se quando pega no telemóvel para expor com demasiado entusiasmo um filme que reencena a violação e o assassinato de uma mulher budista, algo efetuado para despertar a indignação, ou os sermões públicos onde incita os seguidores a excluírem os muçulmanos e os seus estabelecimentos.

Em certa medida, este apelo ao sentimento nacionalista e anti-islamita em discursos muito “virados para dentro” remetem, e muito, para algo que afeta não só o território da Birmânia, mas também diversos países ao redor do mundo, com algumas falas deste senhor a encaixarem quase na perfeição na Frente Nacional. Veja-se quando encontramos este monge a exprimir de forma desonesta o seu receio em relação à possibilidade dos muçulmanos, em particular os Rohingya, estarem a expandir-se e pretenderem apoderar-se do território. O discurso deste indivíduo é desde logo contrariado pelos números: os muçulmanos formam 4% da população da Birmânia, algo reforçado por Matthew Smith. Os depoimentos do criador da Fortify Rights e de outras figuras (tais como U. Zanitar, mestre do pouco venerável W., o jornalista Carlos Sardiña Galache, entre outros) permitem enriquecer o conteúdo de “Le vénérable W.”, um documentário que conta com fragmentos do quotidiano de Wirathu e dos seus atos e discursos, recortes de jornais, trechos de notícias televisivas, vídeos amadores, mapas e informação estatística, ou seja, um conjunto de ingredientes que contribuem não só para apresentar o monge do título, mas também o contexto e o meio que o rodeia.

O filme parte desta figura para expor um contexto mais lato que envolve a perseguição aos Rohingya e a violência cometida sobre os mesmos ao longo dos anos. Note-se os protestos de 19 de outubro de 2003, em Kyaukse, que resultou em diversas mortes, duas mesquitas queimadas e imensa destruição, ou as ondas de violência em Rakhine. Temos ainda a exibição dos movimentos em que este pérfido indivíduo está amplamente envolvido, tais como o Movimento 969, ou o já mencionado Ma Ba Tha, que procuram exacerbar o ultranacionalismo e disseminar o sentimento anti-muçulmano, com as suas palavras a provocarem uma enorme e assustadora aderência. O contexto político e social é fervilhante, algo exposto com acerto ao longo de “Le vénérable W.”, tal como os traços da personalidade desta figura hedionda da nossa História. Wirathu utiliza o budismo para disseminar a intolerância, o medo e a ignorância, aproveita as redes sociais para lançar o pânico, usa os seus livros como um meio de espalhar as suas convicções, enquanto domina as atenções deste documentário bastante competente e acessível.

Aníbal Santiago