Terça-feira, 19 Março

«Histórias que nosso Cinema (não) Contava» por Aníbal Santiago

Sem recurso à narração em off, ou a talking heads, “Histórias que nosso cinema (não) contava” efetua uma releitura histórica da ditadura militar no Brasil com recurso a alguns trechos de obras cinematográficas da chamada “pornochanchada”, um género muito em voga no Brasil durante os anos 70. A montagem ritma o diálogo entre os filmes, enquanto a realizadora Fernanda Pessoa recupera um pedaço do património histórico do cinema brasileiro e coloca primorosamente as imagens e os sons a conversarem entre si. Nota-se que existiu todo um cuidado de pesquisa e seleção das obras, bem como uma tentativa de realçar filmes e cineastas nem sempre conhecidos ou devidamente valorizados, com o documentário em análise a surgir quer como um meio para viajarmos temporariamente à década de 70, quer como uma porta de entrada para uma filmografia que anseia por ser reencontrada.

Entre os exemplares selecionados encontram-se pedaços de obras como “Aventuras Amorosas de um Padeiro” (Waldir Onofre), onde encontramos um grupo de mulheres a apreciarem atentamente os corpos dos trabalhadores das obras enquanto estes falam sobre as suas conquistas. O sexo e o desejo estão muito presente ao longo destas películas, tal como a objetificação da mulher, com o trecho mencionado a ser um exemplo disso. Também o machismo é particularmente notório nestas obras, bem como a nudez gratuita e o sexo. Os próprios títulos contam imensas vezes com conotações sexuais ou duplo sentido, como podemos verificar na ficha de fitas utilizadas. “Elas são do Baralho” (Sílvio de Abreu) é um desses exemplares, tal como “Palácio de Vênus” (Ody Fraga), com este último a brindar-nos com a representação do planeamento de uma greve por parte de um grupo de prostitutas.

Se o sexo, a leveza e os diálogos jocosos marcam uma parte considerável dos trechos escolhidos, já a tortura e a repressão pontuam os pedaços de “E Agora José? – Tortura do Sexo” (Ody Fraga) e contribuem não só para exacerbar o lado negro e hediondo do regime ditatorial, mas também para atribuir um tom mais carregado ao documentário. Através destes excertos selecionados de forma muito pertinente por Pessoa, encontramos uma série de traços do contexto político, social e cultural da época. Desde o êxodo rural aos atos violentos das autoridades, passando pela entrada de investimento estrangeiro, os negócios da bolsa, a falta de saneamento básico, a censura e os conflitos políticos, até aos novos hábitos culturais, os preconceitos, o consumo de drogas e a chegada da crise financeira, estes trechos permitem encontrar laivos da realidade brasileira da época.

O próprio guarda-roupa, as expressões utilizadas, a banda sonora, a decoração dos cenários e os créditos iniciais também aparecem como elementos que permitem um contacto com a realidade canarinha setentista. Já a forma como os filmes estão conservados transmite a falta de preservação de alguns destes trabalhos, com o documentário a resgatar e a atribuir um novo fulgor a estes pedacinhos de História do Cinema. Ficamos diante de um aperitivo que abre o nosso apetite para estas películas, todas devidamente assinaladas no final desta longa-metragem, com Pessoa a estimular o espectador a descobrir ou a redescobrir mais sobre este género muito brasileiro.

As obras de arte surgem sempre como fruto do seu tempo, com o documentário a explanar isso mesmo, enquanto contribui para resgatar essas histórias contadas ou não pelo cinema, com a distância temporal a permitir uma análise distinta das mesmas e uma conversa inesperada com o presente. Dotado de ritmo, uma boa seleção das imagens e um recuperar meritório das memórias cinematográficas do Brasil, “Histórias que nosso cinema (não) contava” é um exemplo de como saber colocar o cinema em diálogo com a História e o espectador, enquanto efetua um convite para revisitarmos um período que se encontra tão distante mas ao mesmo tempo parece estar aqui tão perto. Tudo com uma maturidade surpreendente para alguém que está a realizar a sua primeira longa-metragem. 


Aníbal Santiago

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