Terça-feira, 19 Março

«Ôtez-moi d’un doute» (Só Para Ter a Certeza) por Aníbal Santiago

Num determinado momento de “Ôtez-moi d’un doute”, encontramos Erwan (François Damiens) e Joseph (André Wilms) a traçarem um plano para furtarem waffles de uma roulotte. Este último finge que necessita de ajuda, enquanto o primeiro tenta surripiar comida e bebida. Inicialmente esboçamos um sorriso. No entanto, rapidamente saímos do riso para o aperto na garganta, nomeadamente, a partir do momento em que percebemos que Joseph tem mesmo de ser hospitalizado. Serve este exemplo para realçar um dos bons trechos do filme e um dos seus principais atributos: a capacidade de mesclar os momentos mais leves e cómicos com outros mais sérios e dramáticos. Outra das qualidades de Ôtez-moi d’un doute passa pela preocupação que exibe quer para com os personagens, quer para com as dinâmicas que estes formam entre si, com Carine Tardieu a colocar-nos diante de um feel good movie dotado de humanidade e delicadeza.

Boa parte dos personagens que nos são apresentados são aquilo a que chamamos boas pessoas. Não quer dizer que não cometam erros, bem pelo contrário, mas exibem uma humanidade que nos desarma e agarra, com Tardieu a ter o mérito de conseguir que nos importemos com os mesmos. Essa preocupação e a afinidade que geramos com os personagens contribui exatamente para aquele nó na garganta que sentimos no momento mencionado no inicio do texto, mas também para perdoarmos alguns dos excessos do último terço, quando Ôtez-moi d’un doute tenta afastar por completo quaisquer traços de drama e assume de forma escancarada a sua faceta mais leve. Quem está no centro de quase todos os episódios do filme é Erwan, um viúvo que trabalha a desarmar explosivos. Convive diariamente com o perigo, embora a sua vida pessoal seja bem mais inquietante e explosiva do que o seu emprego, sobretudo a partir do momento em que tem de descobrir a identidade quer do seu pai biológico, quer do progenitor da sua neta.

Juliette (Alice de Lencquesaing), a filha de Erwan, está grávida, mas recusa revelar quem é o progenitor do rebento, enquanto um conjunto de exames levam a que protagonista descubra que o homem (Guy Marchand) que a criou afinal não é o seu pai biológico. A curiosidade conduz Erwan a contratar os serviços de uma detetive e a entrar em contacto com Joseph, um indivíduo vetusto e afável, com quem forma uma relação marcada pela amizade. Mais tarde ainda tenta iniciar um romance com Anna (Cécile de France), uma médica de personalidade forte, embora a notícia de que esta possa ser a sua meia-irmã afete e muito a relação da dupla, naquela que é uma de muitas situações dramáticas que são abordadas com imenso humor à mistura. A juntar a tudo isto, Erwan tem ainda de lidar com as peripécias de Didier (Estéban), um estagiário atrapalhado, irresponsável e peculiar que mantém uma estranha ligação com Juliette, algo que promete algumas reviravoltas previsíveis. 

Cabe ao elenco atribuir dimensão e credibilidade aos personagens e aos episódios que protagonizam, com os intérpretes a exibirem competência e a contarem com dinâmicas extremamente convincentes, embora Damiens seja o elemento em maior destaque. O ator imprime uma postura afável, calma e ponderada a Erwan, enquanto este é colocado perante uma série de situações delicadas e procura não magoar aqueles que o rodeiam, embora nem sempre consiga. Também “Ôtez-moi d’un doute” vagueia entre a tentativa de não ferir o espectador e a procura de se envolver por situações mais delicadas, enquanto conta com alguns gags eficazes, uma utilização quase sempre certeira da banda sonora, diversos momentos de humor e trechos mais dramáticos. Estamos perante uma obra dotada de simplicidade, mas capaz de desenvolver eficazmente as suas temáticas, sejam estas relacionadas com a paternidade, as relações familiares modernas, as dinâmicas entre um pai e a sua filha, a solidão, sempre com enorme leveza e humanidade.

Simples, sem fugir a alguns lugares-comuns e a um ou outro tropeço, “Ôtez-moi d’un doute” é um filme como os seus personagens, ou seja, despretensioso, empático, pronto a cometer alguns erros, extremamente agradável e capaz de prender a nossa atenção.

Aníbal Santiago

Notícias