Sexta-feira, 29 Março

«Gerald’s Game» por André Gonçalves

Tubarão fez-nos recear voltar ao mar, Blair Witch fez-nos ter medo de não voltar aos bosques, e Gerald’s Game, a melhor adaptação de Stephen King deste e de muitos anos passados, vai provavelmente fazer quebrar o negócio das algemas para apimentar o sexo.

Um casal decide ir para uma casa isolada de modo a tentar reintroduzir paixão na sua relação. Um vestido, um par de algemas, um comprimido azul, tudo dentro dos conformes relativos a um casal de meia idade. Mas com a pimenta, vem uma primeira discussão e um ataque cardíaco do marido (Bruce Greenwood). A mulher (Carla Gugino) fica assim acorrentada a uma cama resistente, enquanto começa a ter alucinações.

Entre essas alucinações, cabe então uma narrativa que será embrulhada em metáforas que serão, conhecendo já o histórico da prosa de King, facilmente acessíveis, mas filmadas com uma atenção ao pormenor. Seja em enquadramentos (um simples jogo de cortinados já no epílogo à King ou a justificação para um uso de um plano mais longo antes de uma das múltiplas revelações bater) ou em iluminação – o filme privilegia seguramente revisitações futuras – caso o espectador tenha coragem de voltar aqui, isto é.

Em jeito de contraponto, olhe-se para o multimilionário “cinema” de It, a outra adaptação de Stephen King de 2017, e vejam-se as diferenças no propósito das colocações de câmara, na montagem, ou do tratamento digital da película, e apenas basta pegar nestes pontos. Aqui há terror puro, internalizado, e depois expelido num clímax marcante, totalmente desprovido de cortes rápidos para causar um susto fácil.

Falando do clímax, é exatamente o ponto onde o “gore” encontra o seu maior escape, apesar dele estar continuamente presente. É dos momentos mais desconfortantes que se pode assistir, mesmo se o espectador for versado neste género. Se o pico de violência do jogo recente de Darren Aronofsky (mother!) era acima de tudo moral (sendo o choque e a repulsa focados acima de tudo no objeto alvo da violência), o terror do jogo de Mike Flanagan (conhecido pela sequela de Ouija melhor que o filme original, e por um pequeno filme chamado Hush) é fisicamente ainda mais explícito. E mais não se conta.

Convém realçar o quão isto tudo poderia parecer gratuito não fosse a entrega da historicamente subusada Carla Gugino a este jogo. Aqui está uma atriz sem nada a perder em Hollywood, que dá uma lição de como tantas vezes na indústria, o problema não é a pessoa mas sim a falta de oportunidades/o que se faz com ela. Realizadores como Brian De Palma (Snake Eyes) ou Robert Rodriguez (Spy Kids, Sin City) foram sabendo tirar algo dela, sim, mas em grande parte para alimentar o olhar masculino. Em Gerald’s Game, a atriz surge sexy como sempre, sim, mas pela primeira vez, ela está capaz de segurar um filme. E que filme.


André Gonçalves

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