Terça-feira, 19 Março

«L’économie du couple» por Aníbal Santiago

L’économie du couple” convida-nos a observar de perto o ocaso do matrimónio de Marie (Bérénice Bejo) e Boris (Cédric Kahn): quando tudo parece servir de motivo para discussão, os momentos de afecto são trocados por diálogos recheados de ressentimento e os defeitos que eram encarados com uma certa bonomia passam a ser vistos com desdém e raiva. As feridas abertas na alma tardam em sarar, enquanto outras são desferidas de rompante e trazem consequências desagradáveis e dolorosas, com a nova longa-metragem realizada por Joachim Lafosse a explorar o quão intrincado, intenso e violento pode ser o final de um casamento. Outrora existiu amor. Agora ainda existe algo forte a marcar a relação, mas também imensa dor e uma certa sensação de desilusão.

A unir Marie e Boris estão Jade (Jade Soentjens) e Margaux (Margaux Soentjens), as suas filhas, duas gémeas de tenra idade, bem como uma casa que contém no seu interior o resultado de quinze anos de uma vida em comum. A habitação do casal é o cenário primordial e um dos grandes protagonistas do filme, com a sua decoração a traduzir quer as mudanças inseridas pela dupla para transformá-la no seu lar, quer o cuidado colocado no design de produção. No fundo, estamos perante um cenário que conserva no seu interior as memórias da degradação do casamento, que tanto é capaz de transmitir e proporcionar conforto como opressão e dor. Embora estejam quase a separar-se, Marie e Boris têm de conviver temporariamente na mesma casa, com esta situação incómoda a remeter para o facto de este tardar em conseguir alugar um apartamento.

O dinheiro ou a falta dele marca a relação de diversos casais. No caso de Marie e Boris a situação não é diferente, com Lafosse a abordar eficazmente essa temática. Ela provém de uma família com posses financeiras, trabalha, sustenta o esposo e pagou uma fatia considerável da casa. Ele é um empreiteiro com problemas financeiros, que não tem pais endinheirados, remodelou a casa e não esconde um certo sentimento de inferioridade em relação à esposa. Essas diferenças provavelmente não afetaram inicialmente a relação do casal mas, neste momento, os cônjuges encontram-se numa fase totalmente distinta. Tanto Boris como Marie têm alguma razão nos argumentos que trocam, mas também cometem uma série de erros e atos pouco razoáveis, sobretudo quando reagem mais a quente. Nem sempre é algo fácil de se ver, com Lafosse a explorar a complexidade e o desgaste emocional que envolve um processo de divórcio, sempre sem tomar partido por qualquer um dos protagonistas e a respeitar a essência dos personagens.

No meio deste furacão estão Jade e Margaux, com Marie e Boris a tentarem proteger as filhas ao máximo, embora a educação das raparigas seja afetada por este imbróglio. É uma temática sensível, que “L’économie du couple” aborda com acerto e sensibilidade, embora pareça certo que as discussões entre o casal e as suas novas rotinas acabam por afetar as crianças. Note-se quando os pais procuram explicar às gémeas que gostam bastante de ambas após uma discussão mais calorosa. Pouco depois, Boris comenta junto das petizes que até pode ser que o divórcio não aconteça. Um rack focus sublime permite retirar habilmente o foco do protagonista e colocá-lo no rosto de Marie, enquanto esta se mantém em silêncio e a sua face exibe as dúvidas que perpassam pela sua mente, com Bejo a conseguir transmitir uma imensidão de sentimentos apenas com recurso aos gestos e olhares.

Se é certo que Marie não tem problemas em expor os seus sentimentos de forma bem viva, também não deixa de ser notório que por vezes utiliza o silêncio como uma das suas demonstrações de desagrado, ou de dor, ou introspeção, com a atriz a imprimir uma mescla de intensidade e contenção à personagem que interpreta. Marie tenta impor novas dinâmicas, regras e limites a Boris, embora este desafie imenso a esposa, seja para a provocar ou simplesmente para marcar uma posição, sobretudo quando o assunto envolve as filhas ou o acordo para o divórcio. Diga-se que Kahn expressa eficazmente este lado rebelde, por vezes irresponsável e impulsivo de Boris, um indivíduo que ama as filhas e tem uma personalidade vincada. O quotidiano destes personagens é transmitido de forma atenta e intensa, quase sempre em planos-sequência ou de longa duração, prontos a incutir um certo imediatismo e dinâmica aos episódios apresentados, com o trabalho de Jean-François Hensgens na cinematografia a sobressair, tal como a arte de Bejo e Kahn na composição deste casal desavindo.

Aos poucos ficamos a conhecer esta casa e os seus habitantes, bem como as suas especificidades, até começarmos a ser arrasados e a sentirmos que fazemos parte do seu mundo, com Lafosse a colocar-nos no interior de um drama pleno de humanidade, que não procura os caminhos mais fáceis ou agradáveis. Não existem heróis ou vilões, mas sim seres humanos que procuram defender os seus pontos de vista, com o realizador a deixar-nos perante um filme simultaneamente sensível, delicado, doloroso, violento e intenso, que deixa marca e explora de forma notável o quão intrincado pode ser o final de uma relação.

Aníbal Santiago 

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