Sexta-feira, 29 Março

«Blade Runner 2049» por Jorge Pereira

 

Trinta e cinco anos após a estreia de Blade Runner, a obra seminal de Ridley Scott, que viria a influenciar dezenas de trabalhos cinematográficos e mesmo literários (basta lembrar Neuromancer de William Gibson), surge em cena a sua sequela, Blade Runner 2049. Um filme de Denis Villeneuve que funciona abertamente como uma carta de amor ao primeiro filme, mas que no seu todo não eleva a fasquia, embora acentue a vertente dramática que já marcava o primeiro filme.

Na verdade, esta continuação décadas depois dos eventos relatados no primeiro trabalho, o qual só viria a tornar-se um verdadeiro objeto de culto após o lançamento de diferentes versões, como o Director’s Cut em 1993, prima pela colagem ao visual do primeiro filme de forma a manter uma continuidade estética que mantenha o espectador embutido na distopia de uma selva urbana iluminada por neons que acentuam a sobrepopulação e as condições atmosféricas bastante adversas. No caso destas últimas, repare-se como é trabalhada pela cinematografia Roger Deakins, com os verdes, os azuis e os laranjas a marcarem diferentes espaços e atmosferas – quer na cidade, quer nos espaços desérticos e na circunvizinhança de um Mundo repleto de contrastes.

Ora, neste Universo de Villeneuve o foco agora é o agente K, com Ryan Gosling a liderar os eventos que o vão fazer questionar as suas raízes – algo que o cineasta faz no seu cinema desde sempre (lembrem-se de Incendies) – e aquilo que nos torna humanos, com o drama do “que nos torna humanos” a entrar por campos do pensamento de Isaac Asimov, ou se preferirem, na A.I. Inteligência Artificial de Kubrick pelas mãos de Spielberg.

Repleto de simbolismos e contrastes, que tanto alimentam o mistério, como servem de fonte de rejuvenescimento para a própria saga, Blade Runner 2049 concentra-se mais nos dramas internos do protagonista do que na ação ou em nos dar mais das personagens secundárias. Jared Leto, Hiam Abbass, Robin Wright não ficam longe de figuras estilizadas de cartão, salvando-se a quasi “Exterminador Implacável” Sylvia Hoeks e a “Her” de K, Ana de Armas. Com isto perde-se alguma da atmosfera noir que tanto caracterizava o original. Se a saga ganha uma nova dimensão? Talvez. Se perde alguma da crueza, cinismo e identidade? Definitivamente.

Isso nota-se de forma mais profunda no tratamento que Deckard (Harrison Ford) recebe. Remetido a muito menos tempo de antena, Ford parece um instrumento narrativo para manter a tal continuidade que Villeneuve parece obcecado, ainda mais que em efetivamente arriscar.

Os tempos agora são outros e o estudo e desenvolvimento pessoal do nosso protagonista são quase tudo o que interessa, revelando-se este uma personagem solitária, cumpridora de ordens num regime totalitário e consumista [é impressionante o product placement neste e no primeiro filme], isto num mundo profundamente desequilibrado no povoamento, com os arrabaldes a serem usados como gigantescos depósitos de ferro-velho onde circulam os marginais, ou então ou espaços entregues ao abandono, mas marcados por resquícios de uma antiga civilização.

Em tudo isto, quem dá mais cartas é a cenografia de Dennis Gassner, a decoração de Alessandra Querzola, e a cinematografia de Roger Deakins, que nos transportam visualmente para o Blade Runner de Scott, 30 anos depois. Mas a alma não é bem a mesma e até o trabalho de Hans Zimmer, aqui com a árdua tarefa de substituir Vangelis, solidifica nas suas notas a mudança num trabalho que apesar de cumprir e não envergonhar o antecessor, serve mais para abrir portas a sequelas do que para elevar todo o conceito para um nível superior fora da esfera do desenvolvimento existencial do nosso K.


Jorge Pereira

Notícias