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«Lumière! L’aventure commence» (Lumière! A Aventura Começa) por Aníbal Santiago

“Lumière!” recupera e dá nova vida a cento e catorze obras filmadas com recurso ao cinematógrafo, todas exemplarmente restauradas e reunidas no interior de capítulos temáticos que permitem uma espécie de visita guiada a um pedaço inaugural e fundamental da História do Cinema. Ou seja, estamos perante um documento de enorme valia, que nos transporta a algumas das memórias mais profundas do cinema e da sua linguagem, sempre com a excelente companhia de Thierry Frémaux. Diretor do Festival de Cannes e do Instituto Lumière, Frémaux assume aqui o papel de realizador, narrador, professor e guia, com os seus comentários a contarem com pertinência, ritmo, demonstrações de conhecimento e paixão pelo cinema. Não estamos diante de um discurso que resume aquilo que podemos encontrar na Wikipedia, ou meramente descritivo, mas sim algo simultaneamente pessoal, simples e informativo, por vezes pontuado por algum humor e um entusiasmo sentido. 

Ao longo do documentário, Frémaux coloca-nos não só perante as grandes linhas temáticas dos Lumière e dos seus operadores, mas também pelas descobertas e experiências que estes pioneiros efetuaram. Note-se os travellings que são expostos de forma amiúde (na época denominados de panorâmica), o aproveitamento da profundidade de campo, os enquadramentos precisos, a procura de dar movimento aos planos fixos ou o experimentalismo. Um simples plano fixo a captar um grupo de peixes no aquário permite incutir movimento às imagens, jogar com a iluminação e as sombras, e provocar uma certa sensação de encanto. Temos ainda a “invenção” dos remakes, com “La Sortie de l’Usine Lumière à Lyon” a contar com três versões, ou a introdução do suspense e dos gags humorísticos, com “Lumière!” a expor um período fervilhante onde as possibilidades do cinematógrafo e do cinema estavam a ser testadas.

O humor faz parte de diversos filmes com a chancela Lumière, com o oitavo capítulo do documentário a ser dedicado a estas obras. Na nossa memória fica “L’Arroseur arrosé“, mas também o acerto dos comentários do realizador, sobretudo quando aborda a maneira como os irmãos e os seus operadores chegavam ao efeito pretendido. Atente-se aos filmes em que aparece um indivíduo a rir para reforçar o efeito cómico ou a forma efusiva com que alguns elementos reagem quando estão a ser filmados. Fora deste âmbito, temos o destaque dado ao fumo ou ao movimento inverso de uma parede que é derrubada, entre outros exemplos. Temos ainda o “primeiro” filme de suspense, em particular, uma obra na qual um bebé caminha de forma temerosa e desengonçada. Será que cai? Será que avança sem se aleijar? Estas são questões que se colocam e são rapidamente respondidas, enquanto ficamos diante de um número considerável de obras que vão desde a famosa “L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat”, da qual sobressai o uso das diagonais, até aos trabalhos de uma série de operadores de câmara que se deslocaram a diversos lugares do Mundo.

Essas deambulações permitem captar quer o lado mais pitoresco e exótico desses territórios, quer a faceta mais perniciosa destes espaços, com “Indochine: Enfants annamites ramassant des sépèques devant la Pagode des dames” a surgir como um triste exemplo do colonialismo. Estamos perante pequenos retratos de uma época, nos quais muito é encenado e imensa vida é captada, com “Lumière!” a transmitir a criatividade dos irmãos do título quer como inventores, quer como realizadores, seja a comporem planos ou a criarem tesouros que rondam os cinquenta segundos e contam com um valor inestimável. Mais do que deixar-nos diante de inventores, Frémaux coloca-nos diante de realizadores que não se limitam a filmar ao acaso, com o cineasta a justificar quase todos os argumentos que expõe ao mesmo tempo que desperta uma certa sensação de encanto. Pelo meio, Frémaux realça algumas particularidades destes filmes ao compará-los com obras de Ozu, Kurosawa, Spielberg, Eisenstein e Visconti, algo que permite reforçar o papel dos Lumière como cineastas.

Filme de abertura da 18ª edição da Festa do Cinema Francês, “Lumiére!” não só é uma magnífica escolha para abrir o certame, mas também um exemplo paradigmático da riqueza do cinema e da sua História e do quão necessário é preservar as suas memórias.

Aníbal Santiago