Sexta-feira, 19 Abril

«Lady Macbeth» por André Gonçalves

Pegando inspiração na clássica personagem de Lady Macbeth de Shakespeare, o novelista russo Nikolai Leskov tinha transposto para a sociedade do século XIX uma nova trama de conspiração de um crime, em nome de um amor. Por sua vez, em 2016, o realizador William Oldroyd e a argumentista Alice Birch adaptam então o romance, mudando então o espaço para a Inglaterra rural. Tal mudança não significa, no entanto, uma amenização do enredo. O filme mantém assim uma trama que mistura a descoberta de um amor proibido – num clima onde as mulheres eram praticamente tratadas como/comparadas a gado ou um terreno baldio – com alguns “pensamentos mortais” que partem precisamente da mente da mulher supostamente subjugada.

Fazendo parecer a maquinação cruel de Lady Susan de Love and Friendship [ler crítica] – de longe, a criação de Jane Austen mais maquiavélica – parecer uma brincadeira inofensiva, Lady Macbeth não perde tempo em estabelecer o cenário com o mínimo de floreado possível. É desde logo esse minimalismo que nos captura e desarma, sobretudo no que toca à ausência de qualquer banda sonora em praticamente todo o filme, dando o filme primazia aos sons ao redor, que se revelarão importantes com o avançar da narrativa. Até os diálogos nos primeiros minutos se cingem ao essencial, até porque vendo bem, esta é também uma história sobre problemas de comunicação. Fala-se muito do realizador Christopher Nolan e dos seus grandes feitos nos últimos tempos por Dunkirk [ler crítica], mas um dos melhores diretores contemporâneos tem de facto muito a aprender com a gestão de som e diálogos que o igualmente formalista Oldroyd apresenta logo à sua primeira longa-metragem… 

É um formalismo rigoroso, mas que acaba por estar repleto de conteúdo (e símbolos) a quem for capaz de o revisitar, habilmente conduzido também pela direção de atores, todos eles relativamente desconhecidos: Florence Pugh, a Lady Macbeth do título, e Cosmo Jarvis o seu interesse amoroso obsessivo capturam sempre a nossa atenção, remando contra a falta de empatia que as suas personagens crescentemente geram. 

Esta falta de empatia, transversal aliás a quase totalidade dos seus personagens, é real e intencionada; que o filme não se preocupe minimamente com a nossa compaixão é refrescante. Sem pedir compaixão numa era onde neuroses ou psicopatias geraram anti-heróis aqui e ali na cultura popular, ou em sublinhar contextos políticos separando-os do resto (i.e. feminismo vs. patriarcado – e aqui o diálogo é com a Sofia Coppola de The Beguiled [ler crítica]) ou até eventos narrativos da obra original (um exemplo: a gravidez da personagem titular sendo meramente sugerida), Lady Macbeth acaba por ver o seu alto risco e compromisso recompensados. Desvia-se até no último troço da rota de Leskov, numa variação ainda mais cruel da original, fidelíssima no entanto à sua proposta: uma tragédia sem grandes heróis, apenas homens e mulheres vítimas dos seus vícios – podendo ser o amor o maior desses vícios. Uma obra deveras romântica, portanto. 

André Gonçalves

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