Não é passividade, é conter o olhar e seguir à deriva de um ciclo ritualista, o quotidiano rotineiro no qual o mundo de Paterson parece encaixar. É assim que chegamos à 13ª longa-metragem de Jim Jarmusch, na qual cita uma premissa que se poderia facilmente render aos “encantos” do cinema mainstream passageiro ou às ascensões de underdogs, essa fórmula tão premiada pelas multidões restringidas às suas próprias rotinas.

Poderia, mas é aí que o realizador oriundo de Ohio surpreende com um já habitual prazer pelo tempo, aquela força física e não a metáfora recorrida ao “faz de conta”. É com esse tempo caído em desgraça nos ponteiros do relógio, parecendo voar na mente do nosso protagonista (um motorista de autocarros que partilha, para além do nome, a solicitude da cidade onde habita) que Jarmusch conserva as suas personagens. Elas respiram, pensam para lá das suas limitações, não impedindo, porém, que sejam reféns dos seus maneirismos ritualistas. De certa forma Paterson é um filme de rotinas, e é nelas que o cineasta deposita a sua alma zen ao espetador, enquanto o protagonista toma tréguas com o seu interior artístico, o desejo de ser um poeta, não como um estatuto social ou na esperança de riquezas que daí advenham, mas num enriquecimento emocional, que, como ser consciente, é incapaz de revelar.

Não, não caímos no rótulo de looser, tão bem presente no chamado cinema independente norte-americano muitas vezes celebrizado em Sundance. Ao invés, este Adam Driver é a ventura contida nas palavras de Ozu, “a felicidade cria-se e não se espera“, é o conformismo que se adequa a esta semana tão reconhecível e tão facilmente corruptível (uma ida ao cinema converte-se no mais deliciosos dos escapes). Tais como os vampiros que preservam o seu refúgio em Only Lovers Left Alive, Paterson encontra a harmonia de espaço, o atentar das conversas alheias (que aludem às características de bom ouvinte do cinema de Jarmusch, invocando uma das suas obras mais célebres – Café e Cigarros), aos inesperados atrelados, não como conflitos a servirem de dispositivos narrativos de modelos clássicos, mas como o “brinde” que se esconde nesta comunhão entre o ser mundano e o seu orgulho, apenas quebrada pelo ócio.

 

E, mais uma vez, este quotidiano envolvido em camadas, assim como as camadas envolvem Jarmusch e sucessivamente o nosso Paterson, o homem sentenciado ao cinema do outro. Paterson (filme) é um conjunto dos dois mundos tão presentes no autor. A música, explícita nas idas ao bar como uma busca de uma atmosfera trazida por esse doces acordes dos blues e jazz, “listen to them, the children of the night. What music they make!” (diria Bela Lugosi sob o texto de Bram Stoker), e por fim, o mais evidente, a poesia que atravessa de forma conectada todo o filme, assim como toda a obra de Jarmusch.

Já Roberto Benigni citava em italiano alguns autores norte-americanos (Walt Whitman, Bob Foster) em Down by Law, quase como uma afronta aos statments artísticos do russo Andrei Tarkovsky perante a obra do seu pai poeta (“a poesia não tem tradução”). Da mesma forma surge em Paterson uma personagem mistério com o seu caderno de trabalhos, referindo que a sua obra só tem significado na sua língua materna e, por isso, renegando completamente a tradução, essa maldita tendência pró-Babel (“Poetry in translations is like taking a shower with a raincoat on“).

Mas é nessa poesia que recorta os dias de Paterson, assim como a sua mente, uma ode às vozes estampadas nas palavras de muitos, e com especial atenção a obra de William Castle William até porque Paterson (cidade) é um signo da sua própria poesia, mesmo que não queira cair em citações de trechos do seu trabalho. Porque, parecendo que não, o filme de Jim Jarmusch já transborda, por si, essas palavras soltas, unidas numa precisa e bela onomatopeia. Como o filme, achamos que não há melhor maneira de terminar aqui do que citar, por uma última vez a personagem misteriosa: “Sometimes an empty page presents more possibilities“.