Sexta-feira, 29 Março

«Okja» por André Gonçalves

Bong Joon Ho disse ter recebido liberdade criativa da plataforma de streaming Netflix. Mas este seu “Okja” não é de facto tão livre como pensa que é… Nem é assim tão distante de “The Host” ou “Snowpiercer“, as duas obras mais famosas do realizador. O filme chegou no mês passado a Cannes com apupos sobretudo pelo seu modelo de negócio ferir o orgulho de quem defende a exibição cinematográfica em sala. A Netflix foi aí alvo de “cinéfilos radicais”, que assim acabaram por falar mais da marca multinacional que do produto gerado.

Falemos então melhor do produto, passada a polémica. Apenas um mês após a estreia mundial no festival mais famoso do mundo, o filme chega então em simultâneo a uma audiência mundial de quase 200 países, incluindo Portugal. Híbrido de “E.T.” dos tempos modernos com uma crítica ao capitalismo feroz sem medo de cruzar o caricatural para fazer chegar o seu ponto, “Okja” tem um pouco de tudo para agradar a todos: perseguições, uma mensagem pró-direitos dos animais/veganismo ao mesmo tempo que calca o “marketing” pró-amigo do “biológico”, uma Tilda Swinton em dose dupla, uma adolescente não-irritante e a sua melhor amiga e a verdadeira estrela desta obra: uma super-porca adorável que dá título ao filme. Uma porca que vale ouro, ideia-base para um orçamento de 50 milhões de dólares. Uma de um número seleto (quase 30) de animais geneticamente modificados, que, entretanto, foram enviados para pontos distintos do mundo para serem criados por agricultores ao longo de dez anos, alimentando assim a narrativa de se tratarem de criações “biológicas”.

Em termos puramente temáticos, perante uma mistura de ingredientes (géneros e referências, que podem vir das animações maduras para todas as idades de Miyazaki ou Disney a outros pesos-pesados da indústria norte-americana no domínio da fusão do real com o digital como Spielberg ou Cameron; todos eles de certo modo já fizeram este filme), dá a sensação de que o realizador coreano decidiu-se ficar por um consenso simples, se contraditório. Expandindo estes conceitos, diria que Bong Joon Ho não escapa de facto à simplicidade de um panfleto dos direitos dos animais que force um final relativamente apaziguador. E com a contradição desse panfleto estar também a lutar contra algo maior, o grande “C”, que não deixa de fazer parte da dieta da equipa de produção.

Se nos abstrairmos das questões presentes no parágrafo anterior, temos uma sátira a funcionar a 80% (salvo a caricatura a romper com a rede de segurança de Jake Gyllenhaal), um trabalho de câmara chamativo que justifica a sua pompa, sobretudo no ato intermédio (busca e perseguição), e mais uma direção de fotografia do veterano Darius Khondji (Delicatessen, Se7en, Evita) irrepreensível, retratando o paraíso do lar de Mija e o mundo novo-velho cinzento e envidraçado de Nova Iorque/Seul como duas faces diametralmente opostas – fatores que por si só sinceramente mereceriam a tela mais gigante que se possa atribuir.

André Gonçalves

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