Happy End (Final Feliz) será que vamos acreditar? Michael Haneke não é dotado de finais felizes, mas quem é que realmente quer saber disso? O “final” não funciona como um juízo, uma redenção, nem uma recompensa moral. Nem sequer existe tal coisa que é um “final feliz”. A morte encarrega-se disso, e o tempo é apenas o argumento para este persistir. Mas é no referido “final feliz” que a piada reside, de um humor negro e absolutamente mórbido.

Há que entender que Haneke é um manipulador, um dos maiores manipuladores do cinema, sem querer persistir que existe um tom traiçoeiro, um engano. Não, quem se sentirá provavelmente traído são as suas personagens, condenadas a respirar neste universo tão hanekiano. Happy End é talvez, antes de mais, um filme que consolida esse mesmo Universo, essa carreira de emoções fortes e incómodos constantes. Filmado em Calais, o filme assume-se como um conto de burguesia tão próxima da soap opera, mas até aqui somos enganados. As personagens que se concentram nas suas tramas são violentamente atiradas ao grande abismo, esse que as levará a uma “bolha”, a um isolamento, uma quarentena. A burguesia, assim descrevendo, as classes sociais que o cinema francês sempre adorou retratar, e as diferenças, veiculadas em flashes de quotidiano.

Sim, Michael Haneke levou Happy End para Calais, a cidade francesa mundialmente conhecida pelo problema dos fluxos migratórios. Todavia, não se trata de um filme de refugiados, quer dizer, não nesse ponto de vista. Os refugiados são outros, a família, que se refugia, cada um à sua maneira, nos seus mundos, nas tramas que tentam orquestrar com tamanha plenitude. Eles isolam-se, criam e mantêm um ecossistema de aparências, de sustentabilidade, mas novamente, são enganados. Haneke … Haneke … o que andas realmente a fazer?

Neste universo é claro, a prisão tecnologica que arranca de um jeito tão cúmplice, o uso das novas plataformas audiovisuais leva-nos à memória de Caché, e a imponentes testemunhas que nos tornamos guiam-nos diretamente para os pesadelos vividos de Funny Games. Sim, as redes sociais, a partilha online, os smartphones e todas as possibilidades que nos prendem num autêntico calabouço. Tornamos-nos psicopatas, as nossas personagens tornam-se psicopatas e o espectador também. Este último contido, impedido pela câmara de Haneke que silencia os diálogos à distância, coloca-nos a léguas da ação, imponentes, indefesos, tornamo-nos assim as personagens.

Meticulosamente, Haneke vai construído o seu ambiente, uma atmosfera de iminente catástrofe. Sentimos isso, essa faca aguçada que nos ameaça. Somente ameaça. E é então que chegamos às festas; a primeira ao som de um angelical violino e um discurso de boas-vindas pela nossa Isabelle Huppert; somos convidados a um cruzar de olhares, a um clima de suspeita, ao nascer de um “monstro”, a relações proibidas secretamente vividas no ar, às conversas soltas que nos confundem mais e mais. Saímos a meio, e partimos para outro festejo. O caos já é elevado, as consequências são fatais, fazemos corar as implantações de Luis Buñuel, os burgueses “estão em maus lençóis”.

Haneke fala de violência calmamente, mas de forma dolorosa. É como Amour (este filme bem poderia funcionar como uma sequela vistos os “easters eggs”), tecido frágil e de instintos imprevisíveis. Este é o filme que nos compreende e ao mesmo tempo nos interroga sobre a nossa natureza. A burguesia é uma piada, mas sem o seu final feliz.