Terça-feira, 16 Abril

«Lou Andreas-Salomé» por Jorge Pereira

É curioso que um filme sobre a indomável Lou Andreas-Salomé tenha uma forma tão convencional e conservadora, começando no presente com a intelectual a contar a sua história a Ernst Pfeiffer (Matthias Lier), o qual martela numa maquina de escrever todos os detalhes, enquanto lá fora, o nazismo dá os primeiros passos para a Solução Final.

Ainda assim, e embora isso aconteça perante os nossos olhos, se retirarmos algum moralismo nas entrelinhas (uma mulher com uma vida tão rica, acaba praticamente sozinha entregue às suas memórias e a temer quando os nazis lhe batem à porta), o conteudo histórico selecionado e as fulgurantes performances das atrizes (Nicole Heesters, Katharina Lorenz, Liv Lisa Fries e Helena Pieske) que interpretam esta mulher de origem russa, em diferentes períodos da sua vida, são o suficiente para transformar esta fita de Cordula Kablitz-Post num objeto interessante e que nos inspira a estudar e conhecer mais da vida da autora de origem judia.

O filme começa num período em que a sua história está a prestes de acabar. Estamos em 1933, em plena efervescência do movimento nazi, e um homem bate à porta de uma agora recatada Salomé para pedir ajuda em nome de um amigo. A mulher diz que não o pode ajudar, não só porque está reformada e debilitada fisicamente (já vê muito mal e perdeu mobilidade), mas também porque o movimento fascista transformou a psicanalise numa “ciência judia“, logo condenável.

Aos poucos a relação entre este homem e a idosa Salomé desenvolve-se para que este escreva as suas memórias, e é assim, numa viagem entre passado e presente formatada que conhecemos a vida, a obra, as relações e a evolução do pensamento de uma das mulheres mais fascinantes da história da humanidade.

Espírito livre desde os tempos de criança (nunca percebia porque não podia brincar ao ar livre, como os meninos), Salomé vive inicialmente com o conceito que o melhor é não se apaixonar e renunciar aos prazeres eróticos. Só assim libertaria a criatividade intelectual, diz ela a certo ponto.

Paul Rée e Friedrich Nietzsche, com quem partilhou um triângulo amoroso, são alguns dos escritores e pensadores desta era que sofreram na pele com o seu modus operandis: “eu fiz infeliz todos os homens que me amaram“, afirma aos 72 anos, como que olhando para trás com alguma espécie de arrependimento, mas um remorso ainda assim contido. Muitos apontam mesmo que foi um Nietzsche desencantado pelo fracasso desta relação que o levou a escrever Assim Falava Zaratustra. Um dos bons momentos desta fita é a sequência em que os 3 preparam uma foto que se tornaria famosa.

O único que realmente “a convenceu do seu amor” foi o psicologicamente instável Rainer Maria Rilke, poeta com a qual viria a ter um relacionamento, isto enquanto permanecia num casamento de fachada com Friedrich Carl Andreas, união que durou 43 anos. Passou pelo divã de Sigmundo Freud, tornou-se sua amiga e discipula na psicanálise. Muitas foram as personalidades que foi conhecendo pelas diversas cidades europeias por onde passou (Roma, Berlim, Zurique, São Petesburgo), aqui representadas literalmente na forma de um cartão postal, com personagens estáticas enquanto ela rasga o ecrã com a sua presença vincada.

Se é verdade que tamanha personalidade necessitava de uma fuga clássica à forma da cinebiografia, também é verdade que há suficientes pérolas aqui para Lou Andreas-Salomé brilhar e sair reforçada como uma monumental figura do século XIX e XX.

O melhor: A performance das atrizes e a escolha do material a lidar nesta cinebiografia
O pior: A forma convencional da típica cinebiografia


Jorge Pereira

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