Sexta-feira, 29 Março

«Poesia sin Fin» (Poesia sem Fim) por Paulo Portugal

Apresentado em estreia mundial na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, Poesia sem Fim, de Alejandro Jodorowski chega finalmente ao nosso país. De mansinho, sem em grandes alaridos, pela mão da Films4You, depois de um intenso período de digressão em diversos festivais pelo mundo inteiro. Uma receção demasiado discreta que não rima com o peso e extensão que a obra do chileno Jodorowski tem no universo das artes e do cinema. Mas isso são contas de outro rosário… Aquele a que estamos votados e onde os parques de salas de cinema são praticamente todos ocupados pelas franchises da ordem, afinal de contas, parte da sua luta como cineasta e artista.

Seja como for, completa-se assim o que se poderá apelidar de díptico de parte da sua carreira, iniciado com La Danza de la Realidade, apresentado também em Cannes, há dois anos na Quinzena. Talvez seja essa uma forma deste exuberante realizador, poeta e psicólogo de 87 anos recuperar parte do fulgor da sua carreira cinematográfica, intermitente, desde os anos 70.

Como assumido registo de transmissão biográfica, algures entre o sonho e uma realidade banhada pelo surrealismo e o puro deleite pela arte lírica e a poesia, de que La Danza de la Realidad, lançado em 2013, fora a primeira parte, mais focada na infância de Alejandrito (Jeremias Herskovits), Poesia sem Fim retoma esse itinerário garrido e excitante, recuperando pelo caminho algumas das personagens centrais, para além de Jeremias, a soprano Pamela Flores, como a sua mãe, e Brontis Jodorowski, o filho de Alejandro, aqui no papel do seu pai, Jaime. De resto, um papel central, já que a relação traumática entre pai e filho ocupam e espevitam parte da ação e mesmo da sua explosão e entrega ao mundo para a arte, em geral, e da poesia, em particular. Central é também a presença de Adan Jodorowski, irmão de Brontis, a assumir a versão jovem de Alejandro.

Poesia sem Fim funciona como um desfile carnavalesco, de descobertas, assaltado por diabretes, homens esqueleto, personagens garridas, obsessivas, surrealistas como a poesia de Alejandro. Desde a sua cidade natal, em Tocopilla, até Santiago, onde decide ser pintor e se intromete no bas fonds, cruzando-se aqui com algumas das personagens que mais o influenciaram, como os poetas Nicanor Parra (Felipe Rios) e Enrique Lihn (Leandro Taub), a musa Stella (também interpretada por Pamela Flores) ou até a anã Pequenita (Julia Avadaño). Assim Jodorowski desfila a história da sua família, em que ele é o mestre cerimónias, mas também o centro das atenções.

Na sua ousadia deliberada em ser excessivo e chocante, Jodorowski permite-nos reviver o poder a arte e da poesia nos seus quadros impregnados por uma fantasia surrealista. Talvez um filme demasiado calórico para um público à procura de outras sensações, mas inevitavelmente coerente com todo o trabalho de Alejandrito. Nesse sentido, o conjunto destes dois filmes estará mesmo no melhor de Jodorowski.

Paulo Portugal

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