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«On a Milky Road» (Na Via Láctea) por Duarte Mata

Emir Kusturica fez um filme sobre as duas coisas que valem a pena discutir e que ao fim de milénios nem sabemos ainda se existem: O Amor e Deus. Que, ao fim e ao cabo, podem bem ser um só.

O cineasta sérvio já não fazia uma longa-metragem desde que em 2007 retornou ao Festival de Cannes (onde sempre foi aclamado) com Promessas. O seu mais recente trabalho passou por uma produção infernal de 3 anos, de demolições de cenários, repetições de cenas já arrumadas e inexaurível paciência. O resultado é um trabalho épico, de maravilhamento inesgotável e magia libertadora.

Passado na decorrência da Guerra dos Balcãs, um leiteiro prestes a contrair laços matrimoniais (o próprio Kusturica) conhece, no meio de todo o caos uma mulher, também ela recém-casada (chamada de “A Noiva” a cargo da sempre belíssima Bellucci). Após verem os horrores que a guerra lhes havia reservado, lançam-se juntos numa fuga impossível, onde o fantástico e o real se fundem numa permanência alígera de imagens de pura beleza romancista. 

É da memória que se vive, afinal. Da História (“baseado em três histórias verídicas e muita fantasia”, é assim que começa) do Cinema (um casal a mergulhar de uma cascata, culminando num abraço sob as águas, tal qual A Atalante de Jean Vigo ou, ainda, a introdução da personagem d’A Noiva com o seu rosto lacrimejado numa sala de cinema, como contracampo a um filme antigo, tornando-se a Anna Karina dos nossos dias) e do imaginário infantil deste realizador (montado num jumento e usando o seu guarda-chuva como escudo, recorda o o caráter íntegro de Sancho Pança)

Desta forma, somos embalados lentamente pela capacidade singela de Kusturica em contar histórias. Somo-lo com aquele grande plano do rosto de Bellucci quando diz: “A minha beleza é uma maldição porque desperta o que de pior há nos homens.” Somo-lo naquele abraço protetor de uma serpente (personificação do Diabo, como é dito a certa altura) em pleno tiroteio, no mais intenso misto de som e fúria que vimos recentemente. Somo-lo quando a seriedade destes temas é abafada por breves momentos de humor slapstick. Somo-lo quando cada efeito visual (mesmo que imperfeito) é usado, não como critério exibicionista obrigatório, mas como elemento de apoio necessário para a criação de um ambiente rural discretamente fantasista, fruto do imaginário sequioso do realizador. Ou, ainda, somo-lo naquele plano aéreo final, mostrando aquilo a que Coppola chamou em tempos um “jardim de pedras”, com a mesma simbologia.

E já não há mais filmes assim… Gansos a banharem-se em sangue suíno, falcões peregrinos a investirem contra helicópteros, amantes a serem engolidos pelo céu… Quem faz um filme como Na Via Láctea acredita que no cinema não está tudo visto. E mostra-o.

O melhor: O regresso à atividade de um cineasta que fazia falta, num filme imprevisível e mágico.

O pior: O ritmo, por vezes, apressado e algum CGI já datado.

Duarte Mata