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«Nocturnal Animals» (Animais Noturnos) por André Gonçalves

Como não vivemos isolados do mundo em redor, começo esta crítica com uma crítica às críticas que acusam os detratores deste “Animais Nocturnos” como tendo preconceitos em relação ao facto de ter um dos estilistas contemporâneos mais falados na cadeira de cineasta. A mim pessoalmente não me interessa se seja ator, estilista, futebolista ou o Zé da mercearia a escolher realizar um filme – o talento vem, por vezes, dos locais mais inesperados, e no caso do próprio Ford, já tinha de qualquer das maneiras dado mostras do seu potencial no ainda belíssimo “Um Homem Singular“.  O que interessa é que saiba fazer escolhas acertadas, e ao segundo filme, Ford mete verdadeiramente o pé na argola.   

O início até é suficientemente promissor – um genérico onírico ala Lynch, convocando também o tipo de imagética provocatória recheada de purpurina já vista anteriormente este ano no injustamente amaldiçoado “Demónio de Neon [1]“. Descobrimos então que estamos na mais recente exposição organizada por Susan Morrow, a nossa protagonista. Os planos são sugestivos, intercruzando o tráfico da cidade (nunca percebemos bem qual, não interessa) com o caos da vida atual da protagonista apenas focando-se na cara desta, sem ter que explicar nada. A banda sonora, que convoca inevitavelmente Herrmann para Hitchcock, vai ganhando destaque tanto pela sua intrusividade como pela sua qualidade… enfim, uma sucessão de referências e promessas para o que há-de vir. O que pode efetivamente correr mal? 

Susan, que vive um segundo casamento subtilmente caótico, recebe um manuscrito do seu ex-marido Edward, dedicado a ela. Corta-se logo no papel do envelope, sinal óbvio que a viagem não vai ser bonita. Perdoamos Tom Ford, porque continuamos distraídos pelo “design” e pela fotografia de Seamus McGarvey (os dois grandes pontos fortes aqui, embora McGarvey não deixe até de auto-convocar o seu trabalho em “50 Sombras de Grey [2]” na secção contemporânea e burguesa do filme). Bem, é certo: se falhasse no “design“, isso sim seria grave. 

Susan começa a ler o livro, e é precisamente com a introdução dessa história do livro, uma espécie de enredo vingativo que serve apenas para demonstrar que Edward ainda guarda um ressabiamento especial pela maneira como a sua relação terminou com Susan, que o filme descarrila por definitivo. Esta pobreza da subnarrativa seria até aceitável se houvesse de facto uma veia satírica que desconstruísse o quão pobre este subenredo é. Mas não: Ford toma quase sempre o risível por sério, e desperdiça um naipe de atores formidável em personagens ocas (Jake Gyllenhaal, Laura Linney, Michael Shannon, Jena Malone, Karl Glusman, Aaron Taylor-Johnson, etc. ).

É também com a leitura/visionamento constante da narrativa do livro que ironicamente a “história principal” se estagna, e aí sofre Amy Adams, que na sua postura “vamp” amansada, faz também o que pode: os seus olhos luminosos vão tentando guiar-nos e distrair-nos das más (leia-se: mais que previsíveis) opções estilísticas de Ford, mas sentimos que ela própria não se está a sentir orientar com o desenho de personagem que recebeu – e nesse aspeto, está bem, pois a personagem em si está desorientada. Não deixa também de ter a sua ironia que, de toda a panóplia de referências aqui embrulhada, o filme que me tenha vindo mais vezes à memória seja um outro completamente diferente, protagonizado também por Adams: “Julie e Julia [3];  só que em vez do livro de receitas de Meryl Streep, no seu sotaque e peruca “perfeitos“, temos um policial fraco de série D protagonizado por alguma da melhor nata de Hollywood. Entre os dois, é atirar uma moeda ao ar…    

Em suma: não há polpa aqui; há pompa. 

André Gonçalves