Sexta-feira, 26 Abril

«Kater» por André Gonçalves

Kater” significa gato. O gato em questão é Moses, um adorável “pachá“, que serve de adereço perfeito a um casal vienense aparentemente perfeito. 

Suspeitamos que o “perfeito” dará rapidamente lugar ao desconforto, como aliás os cineastas austríacos com maior projeção internacional (Michael Haneke, Jessica Hausner) nos habituaram. Mas nada nos prepara para o preciso momento em que a vida pacata do casal Stefan e Andreas dá uma reviravolta, causando um azedume na relação irreparável.  

O grande choque vem cedo, e com ele começamos de facto a perceber melhor o propósito artístico do realizador Klaus Handl (premiado com o Teddy Award em Berlim com esta película): o gato é inicialmente testemunha e prova de felicidade para posteriormente ser o símbolo da perda de controlo de uma relação. Os sinais são desde logo evidentes, em retrospetiva: Stefan é músico de uma orquestra da qual Andreas é produtor; é também Andreas o gestor da relação pessoal idílica. Já perto do final, Andreas, que nunca demonstra o descontrolo emocional de Stefan, questiona-o se o que ele fez foi subconsciente como ato de sabotagem da relação. 

Da dupla de atores, quem tem o trabalho mais difícil é indubitavelmente Lukas Turtur no papel de Stefan – os seus surtos são desconfortáveis na melhor das hipóteses e desafiam a credibilidade no pior dos cenários (mas seria a relação retratada nos primeiros 40 minutos mais credível?); enquanto Philipp Hochmair (Andreas) sai-se melhor na figura tal como a personagem que interpreta é sempre o bastião de segurança – um efeito perverso de um filme que nos coloca a partir de um certo ponto em constante estado de alerta sobre o que vai acontecer. 

O andamento é deliberadamente lento, e sabe apresentar, a partir sobretudo da segunda metade, os pontos mortos do dia-a-dia de um casal de uma forma sempre insinuante ou como momentos de potencial risco de vida.

O excesso de contenção e de necessidade de nos conduzir a “locais perigosos“, ao mesmo tempo que nos torna vigilantes e preocupados com o que possa vir a acontecer nos segundos seguintes, também paradoxalmente faz-nos sair do filme por uns momentos. Com o passar da primeira hora, sentimos que tudo pode acontecer. Se felizmente Handl não toma uma saída fácil, ou não maximiza mais o choque passado, o desconforto comum transforma-se em confusão à saída da sala, servindo tanto de trunfo como de farpa a quem esperava sentir mais, de um modo mais imediato. Suspeito que tenha sido essa a intenção desde a génese da obra.  

O melhor: a sensação de desconforto, a colocar-nos no lugar do protagonista “descontrolado“. 

O pior: Tanto desconforto eventualmente acciona o mecanismo de defesa e distanciamento emocional. 

André Gonçalves

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