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«Tangerine» por Paulo Portugal

Tem aroma cítrico a comédia romântica do ano, literalmente, travestida por uma inesperada e tocante emoção. Ao seguir a deriva de uma menina transgender em missão de vingança por seu pimp a ter enganado com outra, Tangerine assume-se assim como um fruto priibido ainda que muito sumarento nesta sua assumida simplicidade. É claro que o facto de ter sido o primeiro filme feito com um iPhone (na verdade 3 iPhone 5s) conferiu-lhe o estatuto com que chegou a Sundance, iniciando aí uma longa e multipremiada digressão por alguns dos mais prestigiados festivais.

Afinal de contas, essa ousadia não espanta quando estamos a falar do cineasta cinéfilo que está a criar uma reputação de criar personagens excêntricas que saem do seu submundo para habitar uma narrativa um universo mais um menos mundano e convencional. Caramba não foi ele que entregou um bebé a um hustler de rua nova-iorquino para criar o seu Prince of Broadway, ou enviou a neta de Hemingway ao ofício de atriz porno empenhada em fazer uma boa ação no anterior Starlet. Tal como nestes exemplos, o que mais seduz no cinema de Baker é essa forma fértil em como combina estas personagens marginais com um cinema despretensioso mas que serve com brio as figuras que criou. Confesso entusiasta pelo cinema realista de John Cassavetes, Baker serve-se da mobilidade da câmara como se sentisse a pulsação destas personagens coloridas.

A ideia e o prazer de Tangerine não é tanto o motivo, desenhado logo nos primeiros minutos, da confissão involuntária de Alexandra a Sinn-Dee (excelentes debutantes transgender Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez) de que o seu ‘namorado’ Chester (James Ranso, também presente em Starlet) a traiu com uma fish (o calão da classe para as vaginas), mas essa viagem durante a tarde e noite de Consoada, entre Santa Monica e Hollywood. Paralelamente, Alexandra procura concentrar-se e chamar as colegas para a sua mais do que anunciada performance nessa noite (virá a saber-se depois que ela própria pagou para usar o espaço). De um lado a fúria e pelo na venta, do outro, a singeleza e candura de quem apenas pretende afirmar a sua condição. Mas temos ainda uma inesperada contribuição de uma família arménia que se cruza com estas personagens em noite que se queria festiva.

Quem tiver dúvidas do resultado final devido ao elemento iPhone que tire o cavalinho da chuva, pois provavelmente se esquecerá dessa curiosidade. Mais depressa somos seduzidos aos tons laranja do entardecer da solarenga Los Angeles, talvez aí uma pista para o enigmático título. Embora possa ser dada também pelo emblema de desodorizante para carro, em forma de tangerina, que Alexandra oferece ao motorista de táxi (Karren Karagulian, também ele veio de Startlet), um cliente habitual dos serviços de Sin-Dee, para camuflar o cheio a vomitado dos clientes anteriores. Talvez esse elemento falso para mascarar uma realidade nojenta acabe por conter a verdade para explicar o enigma. Pois é precisamente esse reabilitar destes sem eira nem beira.

O facto da ação se passar no quarteirão mais famoso do cinema americano, serve ainda para ilustrar a torrente de sonhos, e frequentemente de desilusões, das criaturas que por ali passaram ao longo dos anos. Talvez por isso se imponha um happy ending, embora não sem uma espécie de ‘duelo ao sol’, entre Sin-Dee e Alexandra, seguido depois de um momento de ternura final na lavandaria, em que as duas procuram limpar a roupa (ou a alma) para o retomar de um dia igual aos outros. Esse sim, um gran finale.

O melhor: O parzinho transgender é mesmo fogo!

O pior: Não ter estreado na Noite de Consoada.

Paulo Portugal