Durante a sua carreira, ao holandês Paul Verhoeven foram atribuídos diversos “gloriosos” nomes: sexista, homofóbico, voyeurista, sádico, mau gosto, etc. Mas de uma coisa é certa, não lhe podemos negar o adjectivo de ousado e neste Elle, visto como o seu grande regresso ao cinema, a irreverência é o ingrediente que não falta.

Com mais de cinquenta anos de experiência no cinema, o anterior e “maldito” realizador de Showgirls vira o jogo num mundo descrito pelo politicamente correto e sobretudo pela hipocrisia. Essa partida joga a três: Verhoeven, a atriz Isabelle Huppert e o espectador, este último constantemente desafiado através dos outros dois “parceiros” pelos parâmetros maleáveis da demência (socialmente inaceitável) da sua protagonista. Trata-se de uma mulher forte, longe do heroísmo romantizado de Hollywood, ambígua (com o seu “quê” de psicótica) e sexualmente ativa. Sim, é essa principal característica que coloca a personagem de Isabelle Huppert à frente de enésimos retratos feministas. Ela é sim uma perversa sexual, ou simplesmente (para não cairmos em julgamentos morais), uma mulher com  necessidades simples (se a personagem de Huppert fosse um homem não suscitaria tanto choque), dependente e independente do “cromossoma Y”.

Elle arranca com uma violação, uma ato medonho de invasão sexual que automaticamente começa a perseguir Michelle (Huppert) e a tomar as suas próprias fantasias. Ao contrário de uma enésima variação de I Spit on Your Grave, este definitivamente não é um ensaio de vingança nem uma ode justiceira dos direitos das Mulheres oprimidas, trata-se sim de uma longa fantasia, mórbida para os mais sensíveis, que adquire os eventuais toques do síndroma de Estocolmo. Isabelle Huppert veste a pele desta personagem como ninguém, desta forte mulher do cinema, que sob algumas réstias da anterior Catherine Tramell (personagem de Sharon Stone em o Instinto Fatal) domina num mundo supostamente dominado por homens. Ela é um hino da verdadeira emancipação feminina, e simultaneamente é a mais frágil vítima desse mesmo estatuto. O trabalho de Paul Verhoeven é definitivo, a criação da personagem assim como a tensão psicológica que a culmina, uma sólida ponte entre o ecrã e o espectador, tornam este thriller sagaz, ritmado e degustável sob variados paladares.

Ora são os momentos dignamente screwball, ora é a veia mais arquitetónica do thriller hitchockiano, ou os devaneios voyeuristas merecedoras do realizador. Porém, em Elle não somos induzidos ao intimismo fácil. A personagem apenas deixa-nos conhecer gradualmente, discreta sob o seu perfil, como uma sedução. Somos “fracos” porque cedemos aos encantos desta mesma personagem e da dedicação de Isabelle Huppert em a trazer à “vida”. Verhoeven novamente recorre ao seu método quase pornográfico na exploração intrínseca dos seus peões, o resultado é que depois da sedução cumprida somos intrusos na intimidade desta mulher.

Enquanto segue por aí uma fenómeno cinematográfico-literário de As Cinquenta Sombras de Grey, onde a mulher é dominada por um homem sob perversões sexuais (apelidando essa vulnerabilidade emocional de “amor”, o truque mais barato que pode haver), em Elle, Isabelle Huppert é uma refém dessa perversões, enquanto que, sempre de alguma maneira, tenta resistir a essas ditas fantasias sexuais . Despreocupada, livre, firme e ativa, o novo filme de Paul Verhoeven consegue ser o mais recente grito ao papel da Mulher do cinema. Um regresso e “pêras”!

Pontuação Geral
Hugo Gomes
Fernando Vasquez
André Gonçalves
João Miranda
Jorge Pereira
elle-por-hugo-gomesDespreocupada, livre, firme e ativa, o novo filme de Paul Verhoeven consegue ser o mais recente grito ao papel da Mulher do cinema.