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Aquarius: na balada de Sónia “guerreira” Braga

Aquarius responde-nos com exatidão às nossas mesmas expetativas. Derivada à situação atual da politica brasileira, o “impeachment”, o golpe de estado, é possível fazer leituras desse género neste grande regresso de Sónia Braga ao cinema. Mas vamos por partes.

Clara (Braga) é uma jornalista e escritora conceituada que vive no apartamento que a viu nascer e crescer, situado no outrora grandioso Edifício Aquarius. Porém, ela é a última habitante dessa estrutura visto que todos os outros foram aliciados e persuadidos por uma construtora com planos para o mesmo edifício. Mas Clara é “sangue-quente”, temendo deixar para trás todo um conjunto de memórias vividas naquele mesmo local, mesmo sendo pressionada pela construtora, ela resiste e insurge-se contra os mesmos naquele “edifício-fantasma”.

Em Aquarius existe um forte sentimento de que algo antagónico, uma catástrofe, está iminente. Kleber Mendoça Filho desfruta das mais variadas nuances de diferentes géneros para germinar o seu “aquário”, uma metáfora evidente sobre a corrupção e o envolvimento furtivo dos lobbies na sociedade que não restringe à mera canção do “coitadinho”, nem ao agora vendido registo do “favela movie“.

O filme cénicamente é interligado com o anterior Som ao Redor, onde o pano de fundo ganha imersão nas suas personagens; aqui, o edifício abandonado – e por vezes “abalroado” por forças amorais e corrompidas (existem sim ataques à indústria pornográfica, o jogo de “favores” e até mesmo à “infestação” do evangelismo como golpe dominador politico) – adquire a relevância de uma personagem. Sónia Braga complementa esse ambiente “vivo”, tornando-se na alma de um ser inanimado, que alma é esta?

Mas por detrás desta Clara, a já maior heroína do cinema brasileiro, existe um “grande homem”, Kleber Mendonça Filho, que injeta nesta viagem repartida em três capítulos uma subversiva carga política. A acidez da crítica poderá ser comparada com a mera metáfora. Aliás, são estas alusões que nos sentimos seguros face a eventuais propagandas, até porque Mendonça Filho sabe difundir uma mensagem, sem a utilização do óbvio, nem sequer de cair nos devaneios do onírico.

Essa frontalidade, nada inquisidora, encontra-se no próprio espaço de Clara, como é evidente na sua sala em determinada cena, onde o filme acumula tamanhas “provocações” ao Brasil “politicamente correto” que muitas entidades desejam construir. Entre a invocação, sem raiz aparente, surge a menção da homossexualidade, a amamentação (um ato completamente natural que tem sido atacado como um atentado ao pudor) e ainda a limpeza de bebés (uma rara imagem de cinema realista), que fundidos tornam num quadro de sacrilégio para esta cultural tão moralista, este “aquário” social estabelecido.

Aquarius é tudo num só, menos um “filme” no seu sentido mais simplista. É uma força de expressão filmada em estado de fúria, mas cuja cólera é registada com sapiência. Ao mesmo tempo é uma “mensagem numa garrafa”, uma obra para perdurar para futuras gerações, assim como a cómoda que acompanhou todo uma árvore geracional de Clara. Um retrato subliminar do estado brasileiro que por sua vez conserva a riqueza da cultura de Recife e imortaliza Sónia Braga como a maior das divas do Brasil. Será muito cedo para falar em obra-prima? Muito bem, arrisco em declará-lo como tal. Que venha então a primeira pedra.