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«Love»: cinema pessoal em modo “cumshot”

Love” é um plano antigo, um projeto de sonho que ousa desafiar as próprias convenções do cinema, aquele que é politicamente aceite, e resgatar muito de um teor, agora reduzido à indústria pornográfica, ao serviço do storytelling. Esta ideia permaneceu em Gaspar Noé anos antes do trabalho que o consagrou como um dos mais irreverentes e controversos cineastas do nosso tempo – “Irreversible”. Aos atores Vincent Cassell e Monica Bellucci foi feita uma proposta para protagonizar este “sexo com sentimento“, como o realizador apelida, numa altura em que ambos constituíam um casal, com probabilidades de auferir uma requisitada intimidade às eventuais perfomances. Porém, a dupla recusou, tendo “Love” ficado residido no limbo cinematográfico.

Limbo, esse, que fora retirado recentemente, mas antes Noé havia experimentado novas formas narrativas e estéticas com o não muito consensual “Enter the Void”. A proposta de uma trip narcótica em mistura com esoterismo tibetano serviu de objecto de estudo e incentivo para o avanço deste projeto (agora protagonizado por desconhecidos) que se revelou muito pessoal. “Love” arranca com uma amostra daquilo que havia sido prometido enquanto produto choque, o que se resumiria vulgarmente de filme pornográfico em 3D. O sexo parece real, de certa forma sujo e “ordinário”, afastando-se de qualquer indicio de encenação. Neste caso, Gaspar Noé consegue o seu “quê” de atenção e supera os limites estéticos estabelecidos pelo cinema erótico.

Mas “Love” é um filme que apresenta mais do que uma simples exploração do foro sexual e do muito publicitado ménage-à-trois, funciona como um romance vinculado a memórias autobiográficas. Sim, leram bem, uma biografia complementada sob uma liberdade criativa e ficcional em concordância com toda uma coleção de fetiches que operam num júbilo masturbatório, para ele e não para o espectador. Noé acaba por abordar a sua veia mais romântica, entregue numa bandeja de perversão para “inglês ver“, até que por fim essa mesma capa dissipa e a lamechice extrema é realçada e desmesurada no seu requinte visual.

Temos uma estética retirada através dos estudos feitos por “Enter the Void” – as suas concepções aqui reaproveitadas em prol de uma nova trama, e a narrativa enxertada por falsas elipses e malabarismo temporal. Aliás, tais referências autorais são assumidas com os inúmeros easter eggs que acompanham o regresso ao passado de Murphy (Karl Glusman), um homem que viveu intensamente uma paixão, cuja ruptura é ainda tida como um dos seus maiores arrependimentos. Electra, nome dessa sua “Vénus“, é novamente ouvida após uma tremenda ausência, abrindo “portas” para emoções e recordações não sentidas há muito tempo.

Gaspar Noé interage com a lei de Murphy (“qualquer coisa que possa correr mal, ocorrerá mal, no pior momento possível“) para basear nesta matriz que vai ao reencontro do seu pessimismo e arrependimento – o tempo destrói tudo de Irreversível – o não retorno emocional e físico das suas personagens e a aura fantasmagórica que permanece no final da sessão. No final, acabamos todos por ser criaturas taradas por experiências, que quando submetidos a uma derradeira fragilidade, julgamos saber amar.