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«Posto Avançado do Progresso» por Fernando Vasquez

A história colonial portuguesa está recheada de lendas, vitórias e triunfos gloriosos. Mares nunca antes navegados e civilizações dominadas pelo quase mitológico gentil Lusotropicalismo. No entanto, segundo Hugo Vieira da Silva, o cineasta português que, desde 2006, com o lançamento de Body Rice, tem vindo a dar nas vistas além-fronteiras, existe outra versão da historia, ou melhor, uma continuação da mesma que vai bem mais além dos descobrimentos costeiros que limitam os nossos manuais de historia (e muito mais).

No seu mais recente trabalho, Posto Avançado do Progresso, recém estreado no Festival de Berlim, o realizador traz-nos uma adaptação do romance de Joseph Conrad, onde dois oficiais coloniais, João de Mattos (Nuno Lopes) e Sant’Anna (Ivo Alexandre), chegam a um entreposto comercial perdido na floresta do Congo, de forma a repor a ordem no comercio de marfim local, no final do século XIX.

Mattos e Santana são dois homens muito diferentes, cujas divergências inevitavelmente funcionam como motor da ação desta narrativa quebrada em dois atos.

Se por um lado Santa’Anna não desconhece os rigores africanos, não tendo qualquer problema em manter uma relação amigável com os poucos negros presentes no posto, expressando mesmo uma atração sexual pela figura da mulher africana, o caso do seu superior é deveras distinto. João de Mattos passa as primeiras horas a tentar manter o seu uniforme impecavelmente branco (uma metáfora em nada acidental), e sem nunca o conseguir despir por completo. O calor, a malária e a divisão racial tornam a adaptação impossível, perpetuando um clima de certa desconfiança e medo, barreiras intransponíveis reforçadas pelo tédio causado pela lentidão da passagem do tempo em isolamento. Apesar de ser quase sempre cordial, Mattos apenas comunica com Makola (David Caracol), capataz do posto, sendo incapaz de quebrar a distância que se impõem entre si próprio e os locais.

A chegada de um grupo de nativos desconhecidos vem destabilizar a frágil harmonia desta micro sociedade de “castas”, que em troca do vital e ausente marfim, levam consigo a pequena tropa de homens submissos aos representantes do império.

E nesta fase que o Posto Avançado do Progresso se revela mais forte, já que a saída de cena dos vassalos do reino geram uma serie de desequilíbrios que aos poucos levam os colonos a um estado febril de loucura e alucinações, com resultados trágicos.

A nível temático, Vieira da Silva joga uma cartada arriscada mas extremamente bem-sucedida. Ao contrário de outros que o precederam (incluindo outras produções nacionais presentes aqui em Berlim), embora os protagonistas do filme sejam brancos, a figura do africano vai muito além do habitual mero apetrecho cenográfico. Os diálogos podem ser escassos, mas a forma como distribui referências à mitologia africana é eficaz, ousada, e como tal, de louvar.

O mesmo se pode dizer de algumas das opções estéticas, em particular da nebulosidade da fotografia, que intermitentemente nos obriga a vestir a pele do colono atacado pelo vírus da malária: visão turva, desorientação e perda da noção da realidade. Merecedora de destaque é também a forma como o cineasta português inclui uma conversa entre Sant’Anna e um macaco, empregando apenas legendagem clássica para iniciar mais uma incursão pela progressiva demência das personagens. A mesma ousadia está, no entanto, ausente no momento de maior impulso criativo do filme, quando Vieira da Silva opta por mudar radicalmente de estilo, escolhendo uma caricatura de género slapstick, que peca apenas por se ficar a meio termo, quando tal transmutação se exigia de corpo e confiança inteira e loucamente desmesurada.

O ritmo penosamente lento, em particular na primeira parte do filme, é na realidade vital, já que o tédio e a passagem do tempo são temáticas centrais nesta experiencia. No entanto, é difícil não mencionar que o tempo “perdido” poderia ter sido melhor utilizado na fase em que o estado mental de Mattos e do seu parceiro se deterioram, fase essa que por ser rápida em demasia sabe a pouco.

E neste contexto que se torna imperativo salientar que o sucesso do filme sobrevive, em grande parte, graças a duas performances de luxo por parte de Nuno Lopes e Ivo Alexandre, que se revelam aqui com enorme maturidade e atrevimento. Cada um oferece estilos diferentes, mas juntos exploraram competentemente o espaço para o improviso oferecido por Hugo Viera da Silva. Apesar de pouco ou nada descobrirmos sobre o passado das personagens, não existe qualquer dificuldade em termos de empatia. O carácter de cada está bem vincado, reforçando ainda mais o momento de rutura causado pelo delírio final. Duas representações por parte de dois atores a seguir com a máxima atenção no futuro.

Parece fácil adivinhar que o Posto Avançado do Progresso se tornará numa obra de referencia para 2016, com um enorme potencial dentro do circuito internacional de festivais. Mas bastante mais importante é o facto de que o novo filme de Hugo Vieira da Silva, apesar de suas limitações, nunca deixa de representar um marco na história recente do cinema nacional, em particular pela forma como ousa abrir uma janela para uma outra História, até agora quase “imencionável”.

O plano final do filme, amplamente recomendável a ser descoberto num grande écrã perto de si, fala por si mesmo, e demonstra uma ousadia e coragem que oxalá seja progressivamente mais recorrente na nova cena cinematográfica nacional.


Fernando Vasquez