Quinta-feira, 28 Março

«Carol» por André Gonçalves

A jovem Therese aguarda pacientemente a sua paragem, observando o conjunto de comboio natalício na loja onde trabalha. O barulho do comboio vai-se confundindo com o barulho de outros despertadores. Mas a sirene toca quando avista Carol na loja, procurando uma boneca para a sua filha.

Trabalhando pela primeira vez com um argumento adaptado – e de um texto de Patricia Highsmith, logo para começar! – Todd Haynes (Longe do Paraíso) volta a retratar temas familiares: a homossexualidade, e a transgressão de normas sociais em plena década de 50 nos Estados Unidos. Desta feita, volta a contar com o cúmplice Ed Lachman na fotografia, e pinta o retrato de duas mulheres apaixonadas: a lojista Therese e Carol, a mulher quarentona do título. Uma relação que desafia convenções primeiro pelo género, depois pela classe social, sem esquecer a diferença de idades, e uma disputa pela custódia da filha de Carol pelo meio.

Temos aqui o suficiente para construir um drama com os três atos tradicionais: apresentação, conflito e resolução. E Haynes tem um olhar tão clássico que obviamente não se desvia muito desta estrutura tradicional, pontuando-a ainda mais com uma composição de Carter Burwell que só traz benefícios ao aspeto emocional da película. Apontar o seu classicismo como defeito e classificá-lo de “académico” é desonesto e é perder o objetivo do autor. É também perder toda a maestria aqui presente na sua direção, na maneira como faz pequenos gestos contar – não só na maneira como dirige o duo maravilha Rooney Mara e Cate Blanchett, mas como as filma e como coloca o espectador, ora como voyeur, ora no meio da conversa.

De facto, o que para mim saltou mais neste primeiro visionamento de muitos agendados para o futuro é mesmo a realização desconcertante e sempre dinâmica de Haynes, num “puzzle” de planos para o reconstruírmos e o dissecarmos por anos vindouros. Sim, é um triunfo das duas atrizes principais, mas não sejamos totalmente feministas – este pode até ficar como o grande testamento de talento de Haynes quando a poeira assentar. Mas claro, como será o filme que lhe pode dar finalmente a nomeação ao Oscar, fica bem dizer que já fez melhor…

Com uma abordagem tão clinicamente bela, Carol só falhará por, em virtude até da realização ser tão certa com as suas posições (chamá-la rígida é, por sua vez, ser desumano com o trabalho aqui presente), manter um vidro invisível de uma janela a separá-lo da nossa realidade e de sentirmos assim tudo em primeira mão.

O melhor: a direção de Haynes
O pior: Ser tudo talvez demasiado “certinho” para o seu próprio bem – a nível de K.O. emocional.


André Gonçalves

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