Não é o reencontro com a faceta mais politica e igualmente negra de um Spielberg do subestimado, e por vezes esquecido, Munique, mas há que admirar essa maturação evidenciada por um autor que ousa em não largar o seu árduo trabalho no campo emocional. A Ponte dos Espiões, sob um argumento da autoria dos irmãos Coen (mais Matt Charman), é o regresso da aventura cinematográfica alicerçada no melodrama clássico de Hollywood.

Um filme que reforça a ideia de que este estilo narrativo não está ultrapassado, ao mesmo tempo confirmando as suas costuras de cinema fora-de-moda, inspirado sobretudo nos thrillers políticos dos anos 60 e 70, com o Candidato da Manchúria como principal plano. Mas, ao contrário do que esta afirmação poderia soar, A Ponte dos Espiões remete a um Spielberg preparado para os novos tempos, mesmo sob iguais matrizes. É esperada a demonstração de fé do realizador às crenças da cidadania americana, minando Tom Hanks (com quem não trabalhava desde Terminal, em 2004) com diálogos de motivação nacionalista e de teor profundamente patriótico (“o que nos faz sermos americanos é seguir o livro de regras, a Constituição Americana“, por exemplo).

O ator que fora em tempos celebrado como um dos mais amados nos EUA, funciona como um autêntico “homem de pé”, como a certa altura é descrito, um ser que opera segundo a sua vulgaridade mas que no momento de agir prova ser mais extraordinário do que se julga. Tais características aproximam Hanks e o seu James Donovan a muitos outros atores clássicos, entre os quais James Stewart sob o comando de Frank Capra, provavelmente a maior influência da carreira de Spielberg. O protagonista desempenha um advogado norte-americano nuns EUA expostos aos delírios e às paranóias de um iminente conflito nuclear. Estamos aqui a atravessar a chamada Guerra Fria e as relações com a União Soviética são cada vez mais intensas, resultante de uma nação orgulhosa mas intrinsecamente aterrorizada pelas previsões apocalípticas. Donovan não será nenhum herói de causas evidentemente americanas, mas sim um “profeta” que carrega consigo uma crítica interna construtiva e longe da acidez que um Oliver Stone poderia aliciar se tomasse conta de tais rédeas. O tom satírico proveniente da escrita dos Coen é por si receptor da crónica sobre um homem que opera contra a vontade e interesses do seu país para mais tarde conduzir aquele que seria um dos atos mais vincados de adoração pela sua nação. A troca de reféns, fruto de um malabarismo conseguido pela experiência no ramo da advocacia, e a ponte, não somente um ponto físico, mas a transição para novos tempos que a partir deste momento o mundo atravessaria.

Não é por menos que A Ponte das Espiões esboça alguns dos atos históricos desta complicada década, referências e imagens de teor impressionável, como a incontornável construção do Muro de Berlim, fazendo com que o espectador se aperceba da investigação dos eventos por parte do duo de argumentistas e, sucessivamente, do realizador, capaz de tornar a obra visualmente e descritivamente o mais fiel aos tempos que adapta, tudo isso guiado por uma jornada emocional e de moralidades inegáveis. Neste mesmo percurso que opera como um hino de um cinema cada vez mais decadente, aguentado por homens que redefiniram uma refrescante vaga norte-americana em tempos, os atributos técnicos são puras relações simbióticas com a experiência que poderá ser vivida em A Ponte dos Espiões, entre os quais a fotografia (da autoria de Janusz Kaminski) enraizada na época e sensível à escuridão da noite, simultaneamente auferindo um tom de espectacularidade, e a banda sonora de Thomas Newman, que substitui o veterano John Williams (habitual colaborador de Spielberg), que requisita esse classicismo constantemente falado.

O realizador consegue ainda arrancar prestações credíveis no seu elenco. Tom Hanks mostra-se confiante no seu desempenho, Amy Ryan como a esposa martirológica, Mark Rylance como o carismático espião russo (o macguffin desta intriga) e até a travessia de Sebastian Koch em águas hollywoodescas (para esquecermos um pouco a experiência traumática no quinto Die Hard) concentram as atenções neste muito satisfatório thriller dramático.

Curiosamente, foram precisos “heróis americanos” de histórias passadas para transmitir situações modernas, ao contrário de Clint Eastwood que recentemente transcreveu uma história contemporânea sustentada por dilemas e morais ultrapassadas. Longa vida para Spielberg!

Pontuação Geral
Hugo Gomes
bridge-of-spies-a-ponte-dos-espioes-por-hugo-gomesO melhor - O facto de Spielberg construir uma "faca de dois gumes", uma crítica ao espírito norte-americano em conformidade com uma jornada de moralidades à mesma. O pior - Provavelmente o moralismo enraizado no cineasta.