Sexta-feira, 29 Março

«My Talk with Florence» por João Miranda

É impossível falar de Arte no século XX sem se falar no Acionismo Vienense. Percursor da Performance e da Body Art, este movimento caracterizou-se pela violência e pela transgressão, tendo alguns dos seus membros sido presos por algumas das suas obras. Otto Mühl foi um dos seus artistas que, insatisfeito pela limitação das suas ideias ao mundo da Arte, fundou uma Comuna onde as pudesse aplicar também à vida. A Comuna Friedrichshof foi uma comuna com ideias de extrema-esquerda autoritária onde Mühl, mais do que uma forma alternativa de viver, desenvolveu uma quase-seita, baseada no abuso físico e mental. A titular Florence foi uma das pessoas que foi atraída para esta sociedade e conta-nos neste filme a sua história.

A História está cheia de movimentos assim, na maioria religiosos, onde uma personagem carismática forma uma estrutura hierárquica em que o abuso é sistemático. Estas estruturas são quase todas fantasias patriarcais, com as mulheres relegadas a participantes de segunda. A história de Florence, não só na Comuna, mas também antes, mostra que estas comunas apenas levam à conclusão natural muitas das ideias misóginas que caracterizam a cultura ocidental (e aqui também se inclui a religião e a igreja, qualquer que ela seja). Abusada de forma constante durante a sua vida, Florence consegue, com a sua história, expor esta corrente sempre presente na História. Sim, a Arte pode ser extrema, mas Mühl não conseguiu nunca escapar à “burguesia” como pretendia. Pelo contrário, acabou por criar uma reprodução mais concentrada da sociedade em que vivia. Confrontar Florence e a sua história é olhar num espelho e ser obrigado a confrontar algo de muito feio em nós. A maior parte da cultura mainstream é incapaz de criticar esta misoginia inerente, pelo menos há algumas obras como esta, na periferia, que o conseguem fazer.

My Talk with Florence é apenas isso: uma conversa, mas pelo menos o realizador Paul Poet não sente a necessidade de explicar ou perder tempo com encenações que, por muito chocantes que pudessem ser, retirariam o poder do testemunho na primeira pessoa.

O Melhor: Florence.
O Pior: A limitação das cassetes usadas, que cortam o fluxo do filme. 


João Miranda

Notícias