Quinta-feira, 28 Março

«La Tierra y la Sombra» por João Miranda

 

Anos depois de a ter abandonado, um homem volta para a sua quinta, a pedido do filho doente. Tudo ao redor deu lugar a cana-de-açúcar, cuja colheita causa uma contínua chuva de cinzas (a origem da doença do filho). Todos os dias a ex-mulher e a nora vão para os campos onde trabalham, apesar dos problemas com pagamentos e a burocracia que limita o menor acto de caridade. Rapidamente se percebe que terão de abandonar o local, mas o esforço feito para o construir e manter, bem como as relações uns com os outros, tornam tudo mais difícil.

La Tierra y la Sombra consegue apanhar bem estes novos colonialismos, baseados em relações de poder antigas, já não mantidas pela força, mas pela economia e é, sem qualquer dúvida, um bom filme. Mas um documentário? Há que entender que este filme foi apresentado como parte do programa do Doclisboa, como parte do impulso constante que têm feito para abandonar os formatos mais tradicionais em direcção ao que chamam as “ficções do real”. Analisemos então o filme dentro desse contexto.

Os problemas começam, como sempre, com a falta de contexto: o que seria facilmente demonstrado num documentário é aqui parte do cenário, um dado adquirido que não se pode questionar e, como tal, não se ganha consciência do problema. Neste caso, a cultura da cana-de-açúcar e o papel que serve na economia mundial. Outro ponto que falha é na redução ao individual: ao reduzir os problemas à família, toda a realidade sócio-política acaba por ficar reduzida. Especificamente a luta dos trabalhadores na cana, todos homens fortes e grandes, que só reagem pontualmente e não parecem afectados pelos mesmos problemas. Um documentário poderia não só dar a entender os problemas reais que afectam esta classe, mas também a quantidade de pessoas afectadas. Por último, a construção da narrativa: toda a história se baseia na alternativa de abandonar a casa, sendo qualquer tensão transferida para o interior da família e das suas relações. Na verdade, não costuma haver grandes alternativas para quem se encontra nestas situações. O sonho de fugir para outro lugar é um sonho de classe média, que têm os recursos e a educação para o fazer. Mais uma vez, um documentário poderia mostrar isto, mostrando inclusive as alternativas (se existem) e quais os problemas associados a elas.

Apresentando este filme num festival de documentários, está a confundir-se o poder da ficção e o papel de um documento. A ficção é um dos meios mais poderosos para se poder passar novos valores e ideias, mas não costuma ser capaz de lidar com grandes quantidades de informação (necessárias para fornecer um contexto). A ficção, como um testemunho, também serve de documento (tanto do que retrata, mas também da forma que o faz), mas isso não a transforma num documentário. É a diferença entre um facto e informação: há algo de interpretação e didático num documentário que é o seu foco principal, com a informação a assumir o primeiro plano. A ficção foca-se mais na narrativa e no entretenimento, com o resto a ficar relegado para pano de fundo. Um tenta emancipar as pessoas pela informação dada, outro tenta mudar os valores de forma mais encoberta; um é explícito, o outro implícito.

Noutro qualquer festival, este filme poderia (por causa da sua qualidade técnica e história) ser justificado e até vencedor de um qualquer prémio, no Doclisboa só nos leva a perguntar: onde estão documentadas as lutas daqueles que mantêm o nosso estilo de vida? O Doclisboa é um grande festival e o seu papel (cultural e político) é importante, mas parece-me perder-se nas ideologias do individualismo e do pós-modernismo de forma relativamente acrítica, mais fascinado pela forma do que pelos conteúdos, e acaba por servir mais os propósitos do apparatus do cinema (produção, distribuição, etc.) do que querer assumir um papel político claro. Seria ingénuo pensar que um festival consiga existir sem dinheiro e sem interesses económicos, mas o que serve este filme no seu programa?

O Melhor: A imagem.
O Pior: O que faz este filme num festival de documentários? 

 
João Miranda

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