Sábado, 20 Abril

«Il Solengo» por João Miranda

 

A realidade (ou aquilo a que damos esse nome) é algo estranho. Limitados por milhões de anos de evolução de sistemas que se focaram apenas nas características que nos permitiam sobreviver melhor e de ou ser incapaz de perceber (magnetismo, infravermelhos, ultrasons, etc.) ou de ignorar tudo o resto (atenção seletiva), aquilo que chamamos realidade é apenas uma construção mental. Mais do que o valor absoluto de determinada característica, é a coerência entre experiências que nos vai permitir nomear e definir certos conceitos. A linguagem, tão insuficiente e incompleta, é que nos vai permitir perceber essa coerência ou falta dela com as outras pessoas. Passando ao lado de Wittgenstein e das suas lutas com a linguagem, conseguimos perceber que há algo de colectivo na construção da realidade. Se isso pode ser relativamente consensual no que toca a propriedades físicas (forma, cor, etc.), torna-se mais controverso com a abstracção e complexidade dos conceitos. Assim, conceitos sociais como loucura, género, raça, sexualidade ou normalidade são imprecisos, com limites muito incertos, e por vezes é difícil perceber se é essa construção social da realidade que os cria e mantém ou se são baseados em algo físico ou biológico. Basta ver o trabalho de Foucault sobre alguns desses conceitos. A tendência humana de se definir num grupo de valores semelhantes e de policiar qualquer desvio aos valores e comportamentos definidos como normais potencia e reforça esse efeito. Em Il Solengo vêmo-lo em ação.

Construído apenas por testemunhos de pessoas da zona, Il Solengo conta a história de Mario da Marcella, um homem que se mantinha sempre afastado de todos, vivia numa gruta, com ocasionais erupções de violência e sobre o qual se teceram mil e uma teorias e histórias. Os discursos vão-se acumulando e, com eles, as variações, inconsistências e mesmo contradições. O que a princípio nos parece relativamente simples vai-se tornando menos perceptível com cada história adicionada. Será que aquele homem era mesmo louco? Será que havia na reação das pessoas à volta dele algo que o fazia como era? Até que ponto é que a construção social do grupo se compadece com pessoas que não querem fazer parte dele? Il Solengo não procura julgar ou censurar Mario ou as pessoas que falam sobre ele, tenta apenas, num exercício de contenção admirável, dar espaço para que esta construção colectiva se desenrole à nossa frente de forma desarmante que nos obriga a refletir sobre nós mesmos.

O Melhor: O conceito; o final.
O Pior: A música.


João Miranda

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