Duas partes bastariam para confirmar o quão gratificante é este novo projeto de Miguel Gomes, Mil e uma Noites. Livremente baseado no famoso conto persa, o qual respeita a sua estrutura narrativa, este épico revela-nos mais do que a sátira furtiva ao panorama social português como tem sido descrito, mas até que ponto por ser diversificado e criativo o nosso cinema.

O segundo tomo, O Desolado, foi um exemplo flagrante dessas referências cinematográficas, um remendo de estilos próprios e alusões a outros mestres esquecidos, tecidos em prol de um filme-denúncia, frontal, mas sempre emaranhado num tom irónico e caricatural. Com O Encantado, Miguel Gomes guia-se novamente por essas matrizes do nosso cinema para encerrar uma trilogia sustentada por uma militância quase guerrilheira. Comparativamente, este terceira parte é a mais fraca,  ou porque sofre de um síndroma digno das trilogias, ou porque simplesmente Miguel Gomes tenta encerrá-la de uma forma mais emocional, do que incisiva.

O Encantado começa com um vislumbre do mundo de Xerezade, a bela jovem que é obrigada a casar com um tirano e angustiado Rei, célebre por matar as suas esposas após a primeira noite núpcias. Para além de bela, Xerezade é também inteligente, culta e possuidora de dotes oratórios, virtudes que a auxiliam no seu prolongado plano de sobrevivência. Todas as noites, ela conta uma história sobre um país longínquos e respetivas crónicas mirabolantes envoltas, de forma entusiasmante para que o rei se encha de curiosidade e aguarde pacientemente pela noite seguinte para mais uma história, evitando assim, a mortal noite de núpcias. O primeiro plano de O Encantado é quase como um tributo ao cinema mais marginal de Fritz Lang, O Tumulo Índio, para depois fundir na intimidade das imagens invocadas. Este mundo descrito por Xerezade, tem de tanto místico como alusivo, de caricatural como surreal.

Uma opção arriscada por parte de Miguel Gomes para complementar este O Encantado com uma sentimentalidade e cariz distinto, para depois avançar com um profundo registo etnográfico, enquanto mergulha no submundo dos “passarinheiros”e dos seus tentilhões em “The Inebriating Chorus of the Chaffinches” e a cruza com imagens dos protestos policiais decorridos em novembro de 2013, em simultâneo, com o relato de uma imigrante chinesa “Hot Forest“, uma combinação sobretudo bizarra mas que de certa forma fiel ao paralelismo iniciado em O Inquieto: o encerramento dos estaleiros com a dizimação das pragas de vespas asiáticas em Viana do Castelo. Um paralelismo que o próprio Miguel Gomes revelou ser de uma “abstração que lhe dá vertigens“, para poder encenar de seguida o papel de realizador desaparecido.

Desaparecido, enquanto corpo, porque a alma de autor encontra-se nas mais tenras veias deste Mil e uma Noites, a maior epopeia cinematográfica do cinema português. O Encantado pode não ter o seu total encanto, mas curiosamente, tal como os outros capítulos, funciona como uma obra solta, percorrendo o criativo imaginário da crítica social.

Pontuação Geral
Hugo Gomes
as-mil-e-uma-noites-volume-3-o-encantado-por-hugo-gomes-miguelCom a visualização desta terceira parte é possível deslumbrar com um projeto desta magnitude no cinema português. Miguel Gomes está de parabéns