Sexta-feira, 29 Março

«Francofonia» por Paulo Portugal

Ao oferecer-nos um filme sobre o museu do Louvre, poderia pensar-se que o autor de A Arca Russa faria algo semelhante. Não poderíamos estar mais longe da verdade. Apesar do assombro conceptual (e não só) do tal interminável plano sequência que nos faz deslizar pelo Museu Hermitage, em São Petersburgo, Francofonia reflete de novo sobre o universo artístico num fantástico entrelaçar com a História e a atualidade.

No seu escritório em Paris, Sokurov mantém uma conversa intermitente via skype com um navio cargueiro algures num mar revoltoso temendo pela valiosa carga pertencente a um museu e mesmo pela vida. A partir dessa possibilidade da perda da arte, Sokurov evoca a invasão nazi de Paris, em 1940, com a França dividida, usando várias (e raras) imagens de arquivo e encenando algumas cenas de forma absolutamente irrepreensível. Com os museus na posse nos alemães, apesar de todo o espólio mais valioso do Louvre ter sido levado para lugar mais seguro, o realizador russo entra para o domínio do documentário ficção ao centrar o seu filme em duas personagens chave para todo este processo: o conde Wolff-Metternich (Benjamin Utzerath) e o funcionário responsável pelo museu, Jacques Jaujard (Louis-Do de Lencquesaing), com quem é forçado a manter uma relação de estreita colaboração. “Como se os museus não se importassem com o que se passa à sua volta“, refere a voz de Sokurov no início do filme. Que exulta mesmo o retrato de Chekov no leito de morte, “Levanta-te!“, ou mesmo Tolstoy, “Sr. Tolstoy, acorde!

Mas há ainda outros fantasmas à solta no museu, como um arrogante Napoleão – seguido de perto por Marianne, a modelo da imagem da República Francesa, a exclamar Liberdade, Igualdade, Fraternidade – a exibir-se do espólio assírio e egípcio trazido das suas conquistas: “Foi por isto que fiz a guerra! Por isto, pela Arte!” Nesta altura não conseguimos deixar de pensar no que tem vindo a suceder às ruínas de Palmyra, sistematicamente destruídas pelo Estado Islâmico. Sobretudo quando vemos uma estátua com mais de nove mil anos. No entanto, a agulha de Sokurov muda ainda para o que sucedia naquela altura na frente oriental da guerra, onde os museus russos não eram poupados, museus como o Hermitage, e onde se vêm crianças mortas na rua. Um filme brilhante sobre o poder da arte para guardar a memória.


Paulo Portugal

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