Quinta-feira, 28 Março

«Anomalisa» por Paulo Portugal

Divertido, triste, excitante nos vários sentidos do termo e bastante comovente, Anomalisa eleva a animação stop motion à categoria do cinema adulto naquele que é, para já, o nosso eleito para filme do ano.

A dupla de realizadores que converteu uma sound play – peça declamada apenas pela voz, aqui de apenas duas pessoas -, num projeto de crowdfunding para fazer uma animação com recurso a impressão 3D tem aquele perfil que se arrisca a tornar-se num verdadeiro fenómeno de culto.

O autor dos geniais e inspirados Queres Ser John Malkovich?, Inadaptado, Despertar da Mente ou mesmo o mais recente Sinédoque, Nova Iorque explora agora da forma mais inspirada o efeito da ‘ilusão Fregoli’. “Google-se” o significado para perceber que se trata de uma síndrome que afeta quem acredita que diferentes pessoas são afinal de contas a mesma, com o rosto igual, apenas vestidas de maneira diferente.

É esse sintoma que levará à crise existencial de Michael Stone (com a voz inconfundível de David Thewlis), um homem de meia idade durante uma viagem a Cincinnati para dar uma conferência sobre como melhorar o serviço aos consumidores, baseada no seu best seller. Mas é já também a banalidade dos gestos triviais desde a chegada ao aeroporto e depois no hotel que vai crescendo o interesse intrigante colocado nos detalhes e rigor da animação, ainda que todas as pessoas tenham o mesmo rosto e a voz de Tom Noonan, incluindo a sua mulher e filho com quem fala ao telefone. Até que gradualmente entramos na cabeça de Michael Stone e numa crise existencial iniciada por alguns cocktails-com-um-twist a mais e uma visita relâmpago ao hotel de uma mulher com quem vivera há dez anos atrás um “affair”. Mas nada nos prepara para o posterior despoletar de emoções que o conduzem a Lisa, uma mulher banal, com uma cicatriz discreta num olho, mas com uma voz (a de Jennifer Jason Leigh) que a singulariza. Visivelmente descontrolado, Stone acabará mesmo por se envolver com Lisa, a sua Anoma-Lisa, numa das mais incríveis, realistas e tocantes, cenas de sexo que vimos na tela.

O filme continua, e como, mas nesta altura Charlie Kaufman e Duke Johnson já nos deram material de sobra para refletir sem nunca abandonar o assombramento do que estamos a ver. Podemos até atirar para o meio alguns bonecos eróticos, com destaque para uma boneca japonesa mecânica vintage, mas ficaremos irremediavelmente ligados à implosão e descoberta de um novo mundo para Stone, com a banda sonora do tema de Cindi Lauper a capella “Girls Wanna Have Fun”


Paulo Portugal

 

Notícias