Sexta-feira, 19 Abril

«Southpaw» por José Raposo

Primeiro Round. Nova Iorque. Billy Hope. Boxista, Campeão do Mundo em Pesos-Leves. Um recorde, motivo de rivalidade, inveja, sangue: 43 vitórias, nenhuma derrota – zero. A Musa: Maureen, a mulher que o tem levantado, um passado em comum que se estende aos tempos de vida conjunta sob o teto do mesmo orfanato. Jordan Mains, o agente de dentes afiados que dispõe das peças no tabuleiro. Já sabemos: nem a máquina do espetáculo nem os números da fortuna podem parar. Dinheiro? Muito, mas cada vez mais difícil. No derradeiro combate de Billy o coração será mais sanguíneo, batendo-se com a cólera negra daqueles a quem a Justiça traiu. Começa (e acaba) tudo ali, onde a esperança morre e a tragédia mata, naquele momento fatal em que Maureen lhe morre nos braços à conta de Escobar, o rival com ciúmes da fama

Segundo Round. Southpaw, um melodrama ambientado no mundo do boxe, realizado por Antoine Fuqua (Dia de Treino) a partir de argumento de Kurt Sutter (Sons of Anarchy), é apesar de tudo, uma tímida aproximação à mitologia do boxe, com escassos traços de uma memória cinematográfica capaz de fazer coincidir o espaço do ringue com uma dimensão privilegiada para o drama. O verdadeiro combate de Hope (Jake Gyllenhaal) é consigo mesmo: transformado no seu pior inimigo, terá que arrepiar caminho na espiral de consumo de drogas e álcool se quiser voltar a ter custódia de Leila, filha única do seu casamento com Maureen (Rachel McAdams). Fuqua com algum sucesso mas com pouca chama criativa, mobiliza a atenção do espectador no sentido de o envolver emocionalmente num desfecho com final feliz. Vistas assim as coisas, fica-se com a sensação do jogo estar viciado logo à partida: mais do que contar uma história a partir das possibilidades intrínsecas do género, fazendo do boxe uma porta de entrada para um universo psicológico rico e complexo, testemunhamos antes a consagração de um artefacto ideológico em função de um desporto. Que ideologia é essa? A do herói inquebrável, fenomenal, e imparável, como a certa altura Eminem, na banda sonora, nos faz questão de recordar. Southpaw foi inclusive inicialmente pensado para Marshall Mathers, partindo de experiências pessoais do rapper, readaptando-as à realidade do boxe. Não deu nisso, mas a força de redenção que popularmente se associa ao rapper atravessa todo o filme.

Terceiro Round. Cabe a Tick Wills (Forest Whitaker), o treinador responsável pela recuperação física e emocional de Hope, ser o pilar moral da narrativa, apresentando as suas falhas e erros passados como forças de um carácter capaz de inspirar os outros. Utilizando o desporto como ferramenta de reabilitação social, Wills vê em Hope uma hipótese para dar um sentido de justiça à sua própria vida. O percurso de ambos cruza-se e confunde-se, dando origem a uma narrativa comum, que é no fundo o arco temático que dá razão de ser ao filme. Daí que a vingança justa, se é que é disso que se trata, possa ser encarada como a grande matriz de Southpaw, ainda que Fuqua e Sutter não a tematizem de forma exaustiva. Esta abordagem ligeira encontra para além disso expressão em Mains (Curtis “50 cent” Jackson), figura puramente ornamental e próximo da caricatura, com uma presença amoral e conflituosa que se acaba por perder no meio de tanto cliché (não ajuda que o desempenho de 50 cent seja sofrível a todos os níveis e em todos os momentos, com graves lacunas na dicção do texto, postura, etc, etc).

Knock Out. A encenação dos combates, com os logotipos da HBO Boxing a cercar o grande ecrã, anuncia uma situação mediática que nos permite traçar uma panorâmica entre deporto, espetáculo e cinema. Fuqua, que contratou a equipa da HBO para filmar e coreografar os combates, comentou numa entrevista que o propósito passava por conseguir um registo da intensidade e violência que se vive no ringue mais realista e imediato. A descaracterização do espaço do ringue enquanto sistema de representação corresponde à erosão de um discurso cinematográfico, que aqui dá lugar (de forma bastante literal) a um realismo patrocinado pela televisão. É por isso que os planos subjetivos, onde seguimos o combate a partir da perspectiva dos lutadores, pouco contribuem para o esboço de uma coreografia dos corpos no espaço, sinalizando apenas o domínio do espetáculo televisivo. Sejamos, por isso, claros: quando a energia dos combates é contagiante e faz vibrar, isso resulta acima de tudo do desempenho de Gyllenhaal, um ator com uma versatilidade assinalável e que leva o filme aos ombros.

O melhor: Jake Gyllenhaal.
O pior: A narrativa, previsível e formatada.


José Raposo

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