Quinta-feira, 28 Março

«Métamorphoses» (Metamorfoses) por Beça Gradiz

Só vais ter medo, se acreditares.

A premissa do novo filme de Christophe Honoré é ambiciosa, apelativa e promissora. Trata-se duma adaptação do texto clássico, do poeta latino Ovídio, numa abordagem moderna e recreada nos subúrbios duma França contemporânea. O poema narrativo original que abrange mais de 250 mitos, em 15 livros, conta a história do mundo desde a sua conceção, até à morte de Júlio César, coetâneo do autor. Ovídio combina ficção e realidade, através das relações entre deuses e homens, e das suas transfigurações em animais, árvores, rios e pedras, representativas do início dos tempos.

A história abre com quadros de natureza viva, mas rapidamente nos transporta à imagem de um caçador que em busca da sua presa, encontra um ser a tomar banho e se detém a espiar. Num piscar de olho à passagem de Diana e Actaeon, o intruso é transformado em veado, como preço a pagar pela afronta, e de seguida abatido pelo colega de caça, deixando o mote e finalizando o prólogo.

Como seria impossível para Honoré adaptar a obra na integra, optou por nos apresentar os mitos seleccionados, na perspetiva de um todo, contando para isso com diversos saltos narrativos e, principalmente, com a personagem central, a mortal Europa, que nos guia pelos 3 capítulos que compõem a história.

Abordada por Júpiter à saída da escola, a destemida adolescente decide segui-lo e ouvir as histórias dos deuses e de como se apaixonam pelos humanos. Na segunda parte assistimos a um interlúdio com Baco que acaba interrompido por Orfeu e o seu grupo de seguidores, ao qual Europa se junta no capítulo final.

Observando através dos seus olhos, vemos um mundo que se rege pela paixão, pela luxúria, pela violência, pela vingança, pela crença, pela gratidão, pelo amor, pelo medo, pelo poder e pelos deuses que serão sempre os Deuses. As histórias de Juno, Argos, Narciso, Terésios, entre outros, acabam por tornar Europa mais madura no final do seu percurso, demonstrando ser a mais forte e entendendo melhor as debilidades de cada um, sobretudo as dos homens.

Honoré não tem medo de brincar com a magia e tem como principal finalidade provocar o espectador, não tanto pelas imagens explícitas, mas pelo que se esconde por trás delas. Usa as personagens como deliberadores do mundo e desconstrói a maneira como vemos a sociedade contemporânea, com uma espécie de contemplação arcaica. A sua toada determinada, traz reminiscências das adaptações literárias de Pasolini, nomeadamente na trilogia da vida, assim como o uso de atores amadores ou mesmo a exposição descarada de genitais. O voyeurismo permanente invoca a ideia de que ver é acreditar, o que resulta invariavelmente em momentos de metamorfose, acompanhados, por vezes, de belos cenários idílicos, surpreendentes sequências oníricas e uma banda sonora aprazível e consentânea. A natureza sempre presente, sugere uma ideia de permanência e continuidade, duma persistência no tempo da substância fundamental da criação. A primeira frase do magnum opus do poeta: “O meu propósito leva-me a falar da transformação das formas em novos corpos”, serve também de pista, à abrangência do tema focado na obra e à multiface textual, adversa a definições restritas e imutáveis.

Existe, claramente, uma maior aposta na imagem em detrimento do diálogo, não sendo, contudo, constante na arte de nos prender ao ecrã. As recorrentes representações abstratas, dificultam a existência dum laço efetivo entre o espectador e as personagens, nas mais variadas situações. Honoré espera que a ligação se estabeleça mais intensamente, ao nível sensorial e meditativo, apesar de estarmos perante um trabalho extremamente idiossincrático. O encadeamento das histórias resulta, numa estrutura narrativa descontínua. A película, como um todo, carece de enredo e complexidade, mas tem certos momentos fascinantes e saímos da sala a ruminar.

O melhor: A corrida de Atalanta e Hippomenes.
O pior: Pode ser necessário um mínimo de familiaridade com as mitologias grega e romana para ser preso pela história.


Beça Gradiz

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