Quinta-feira, 25 Abril

«Stray Dogs» (Cães Errantes) por José Raposo

A obra de Tsai Ming-Liang é um dos pilares fundamentais do cinema contemporâneo. Cães Errantes é um gesto agressivo que encara a vida subterrânea das cidades em ruína. Essa agressividade fica a dever-se em grande parte ao formalismo de Ming-Liang e aos seus planos longos e demorados. Ver os seus filmes é como descobrir uma verdade.

Cães Errantes manifesta o quotidiano de uma família de Taipei caída na pobreza. Um pai (Lee Kang-Sheng, regular colaborador do realizador), os seus dois filhos (Lee Yi Cheng e  Li Yi Chieh) vão vivendo à margem: à margem do conforto e das coisas fáceis. A circulação do capital à sua volta é de uma velocidade maligna, centrífuga. Abandonados à solidão, habitam um presente que devora outras possibilidades. As coisas de superfície, como os néons refletidos numa poça de lama, ou as escadas rolantes de um supermercado, mostram-se como aquilo que são: imagens para pensar o mundo. O olhar demorado sobre a realidade torna-se uma agressão porque as condições do presente são marcas do sofrimento. O rosto de Lee Kang-Sheng é uma paisagem maior que a vida, onde todas as sensações ficam registadas: nas lágrimas que lhes escorrem pela cara enquanto enfrenta a chuva suja de Taipei, nos suspiros do cansaço esgotado quanto se deita num colchão improvisado ao cair da noite.

Não se trata de um cinema de denúncia panfletária, onde o cinema está ao serviço de uma política concreta que tenha a moral a seu lado (também não viria nenhum mal ao Mundo se assim fosse), antes um cinema com vontade de destruição e com desprezo pela articulação de uma utopia radiante. A sociedade do consumo, que de quando em vez entra pelo plano dentro e lança alguma da sua luz colorida na nossa direcção, nunca é pensada como alternativa. O sentido de composição de Ming-Liang nesses momentos, como em tantos outros, é mortal. Nos ângulos inclinados onde a imagem se desdobra infinitamente sobre os vidros das arcas frigoríficas vemos toda a chama de um cinema em marcha, passando sobre o mundo dos objectos como um fogo imenso.

Enganadora, portanto, a ideia de que os planos longos e demorados correspondem sempre a uma experiência serenamente contemplativa. A violência da permanência da imagem resulta de um exímio trabalho de dissolução de mecanismos monolíticos, como o são seguramente a continuidade e a narrativa. Há um plano magnífico em que a noite já vai avançada e alguém dá de comer aos cães que vivem debaixo de um viaduto. A luz da lanterna atravessa todas as superfícies à velocidade de um acidente e aquilo que acontece é o Universo a existir – que enigma imenso aquele rosa choque do saco de plástico…!

É um cinema elementar, onde o choque entre a estética do cinema e o mundo das coisas sensíveis resulta num encanto que vai sendo raro no campo da sétima arte.

O melhor: O cinema de Tsai Ming-Liang não pára de se expandir.
O pior: Nada a apontar


José Raposo

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