Sexta-feira, 29 Março

«Kreuzweg» (As Estações da Cruz) por Duarte Mata

Numa das últimas cenas de Estações da Cruz, a Mãe, ao escolher o caixão esbranquiçado para enterrar a sua filha pré-adolescente, refere “São minimalistas“. Ao ouvir o comentário, o dono da agência funerária replica “Sim, mas os outros não são brancos“. Não haverá talvez melhor frase que descreva este escatológico drama alemão. Nem Bresson, nem Dreyer. Esta fábula religiosa é um descendente vivo do cinema de Manoel de Oliveira, evocando (mesmo que indiretamente) a frase do cineasta português “E o cinema nada mais é que o registo audiovisual do teatro“. Referimo-la, pela abordagem cénica que o alemão Dietrich Brüggemann opta, maioritariamente “lírica”, em catorze cenas expostas por um número igual de planos longos, prevalecendo “a palavra” à “ação”. Tal resulta num minimalismo indissociável de uma pureza estética que torna esta obra muito mais relevante que apenas o seu argumento (o qual foi, merecidamente, premiado no Festival de Berlim do ano passado).

Há um ambiente permanentemente intimidante, o que confere um sentimento de alienação à protagonista, enquanto se vê confrontada e forçadamente conformada com a severidade dos valores cristãos na sua família rigidamente católica. Como tal, qualquer procura metafísica que poderia ser apontada vê-se rejeitada e despedaçada, numa exposição cruel e assustadoramente relevante sobre comunidades extremistas e fundamentalistas do género (excluindo, claro está, a última cena, num dos mais belos movimentos de grua que vimos recentemente, em que a metafísica e, já agora, Bresson entram diretamente no que parece ser uma referência ao seu O Processo de Joana d’Arc, heroína que nos parece mais reencarnada neste filme do que os adaptados episódios de Cristo que conferem a estrutura à obra).

Falamos em exposição e é perfeitamente justo que ocorra desta maneira, mesmo que disfarçadamente. Após a morte irónica, tanto o padre como a Mãe são deslocados do enquadramento para um canto do quarto onde a mesma ocorreu. Quando a câmara pára de os acompanhar, deparamo-nos com um plano que podia ser roubado dos melhores Lang’s ao colocar a família incrédula com o seu ato enquanto um relógio ameaçador em plano de fundo se sobrepõe aos seus rostos, de uma forma algo punitiva. São pormenores como este que tornam Estações da Cruz uma das grandes surpresas do ano.

O melhor: A abordagem séria da religião num estilo minimalista.
O pior: Nada de mais a apontar.


Duarte Mata

Notícias