Depois de O Inquieto, chega-nos O Desolado, a segunda parte do já proclamado épico social de Miguel Gomes, As Mil e uma Noites, que tem como base o famoso conto persa, onde a bela Xerazade, a fim de preservar a sua vida, tenta entreter o diabólico rei com os seus relatos de histórias fantásticas povoadas de misticismo. Porém, esta livre adaptação não incute narrações a lendas persas nem algo que valha. Miguel Gomes substitui com outro tipo de histórias, as de um país socialmente desesperado, onde reina o insólito e o descontentamento. Esse país é Portugal.

Na primeira parte, o realizador do muito prestigiado Tabu conseguiu captar a atenção de todos ao esboçar um mundo que funde a realidade com um surrealismo caricato e sempre abrangido com um constante tom de denúncia. Com O Desolado esse extenso surrealismo é salientado logo no primeiro ato – Chronicle of the Escape of Simão ‘Without Bowels’ (Crónica da Fuga do Simão ‘Sem Tripas’) – no qual seguimos um fugitivo à polícia em montes de aldeias vizinhas de Viseu. Uma história que na pratica soa mirabolante é na verdade inspirado num mediático caso real que fez as manchetes dos nossos jornais. Aqui, Miguel Gomes revela uma faceta mais contemplativa, mais paciente e nem por isso menos lunática, trabalhando com atores (Chico Chapas) e alguns não-atores. Mil e uma Noites invoca uma linguagem enraizada na nossa “portugalidade”.

Porém, este é o ato menos conseguido pelo autor nesta sua jornada. O ritmo fraqueja e infelizmente Gomes cai no erro dos muitos autores portugueses. Mesmo assim, a narração é digna de um ar de revolta constante, ares que se prolongam ao ato seguinte, The Tears of the Judge (As Lágrimas da Juíza), uma verdadeira queda de dominós que expõe muitos dos problemas que afetam a nação. Luísa Cruz consegue levar a sua personagem ao extremo, num misto de teatralidade com o seu ego oculto e uma vontade inerente de denúncia. Se Simão ‘Without Bowels’ foi a menos conseguido das histórias, aqui Miguel Gomes encontra a sua pequena “obra-prima”: um vórtice de bizarrices, comédia non sense e uma crítica sem receios.

Diríamos que estamos no auge das Mil e uma Noites, apogeu que acalma com a passagem ao ato seguinte, The Owners of Dixie (Os Donos de Dixie), que tal como acontecera com O Inquieto é o último tomo onde é transferida toda a emoção antes ignorada. A jornada de um cão e dos seus donos recebe contornos etnográficos quando tenta esboçar a comunidade de um bairro suburbano de Lisboa. Três atos sob tons opostos e divergentes que indiciam uma só verdade: Miguel Gomes é um conhecedor nato de todos os códigos do cinema português, sendo óbvio que a sua carreira como crítico favoreceu essa diversidade criativa, a qual não se via desde João César Monteiro.

O cinema contemplativo de autor em Simão ‘Without Bowels’, o conto ácido e de influências teatrais de um Manoel de Oliveira em The Tears of the Judge e o cinema com toques de Pedro Costa e Marco Martins no último capítulo, fazem daqui três histórias, três estilos diferentes, três razões para proclamar As Mil e uma Noites como um grande evento do cinema português e até mesmo mundial. Fantástico.

(crítica originalmente publicada em maio de 2015)

Pontuação Geral
Hugo Gomes
as-mil-e-uma-noites-volume-2-o-desolado-por-hugo-gomesO segundo ato, o mais fabuloso até agora desta jornada pelas "arábias"