Sábado, 20 Abril

«As mil e uma noites — Volume 1, o inquieto» por Paulo Portugal

E agora, let’s rock and roll!‘, atirou Miguel Gomes de palco cheio na sessão muito concorrida da Quinzena dos Realizadores, onde se viu o primeiro volume das suas Mil e Uma Noites, como que a sugerir um mergulho na realidade que ali vinha. Ainda que o que se passa durante essas duas horas seja tudo menos rock and roll. Tudo ou quase. Até porque temos uma Xerazade punk, uma ilha com as virgens e um Primeiro Ministro de pau feito, graças a um spray milagroso que lhe permite uma prolongada ereção a ele e aos membros da Troika, enquanto decidem que cortes fazer. Mas vamos com calma, que o filme dura seis horas, o tempo de uma noite, como explicou o realizador. E toda a comparação com a realidade será mera coincidência. Será? Sim, As Mil e Uma Noites prometem ser um dos grandes acontecimentos deste Cannes 2015.

Para quem não tem estado escondido debaixo de uma pedra recorda-se que o filme está dividido em três volumes, O Inquieto, O Desolado e O Encantado – os dois últimos para ver nos próximos dias – decorre entre agosto de 2013 e julho de 2014. Ora, o desafio do realizador foi vender um projeto filmado onde documentava o que se passaria nesse espaço de tempo, construindo ficções a partir da realidade vivida. Um ecrã ou tela em branco, portanto. Risco assumido, mas que faz Gomes partir em fuga para a frente no início do mesmo, como que a exorcizar-se logo a abrir.

A verdade é que esta ‘white canvas‘ acabou por ser bem acolhida pelo grupo de parceiros reunido nesta coprodução luso-franco-germânico-helvética, coordenada por Luís Urbano, de O Som e a Fúria, e captada pela câmara de Sayombhu Mukdeeprom, o diretor de fotografia do Tio Boonmee, de Apichatpong Weerasethakul. Entre outras colaborações, um trio de argumentistas, coadjuvado por um grupo de jornalistas encarregue de tratar os temas noticiosos e, em conjunto, dar-lhes forma narrativa. E, claro, a revelação Crista Alfaiate, como Xerazade à frente de um elenco de atores e uma infinidade de extras e personagens reais.

O que vemos é apenas a forma como a triste realidade da miséria lusitana se filtra com o onirismo provocador de Gomes a sugerir-nos este sonho feito pesadelo de uma noite com Xerazade e os seus relatos ao Grão Vizir – não se sabendo se era aquele que queria ser Califa no lugar do Califa…

Apesar de alguns “comic reliefs”, temos de lidar com o desafio onírico em que convivemos com alguns dramas profundos documentados, sempre num estilo familiar a Gomes, em que se deixa seduzir num território entre a realidade e a ficção, iniciado em Aquele Querido Mês de Agosto, que o deu a conhecer o realizador na Quinzena dos Realizadores, e prolongado em Tabu.

É então neste estilo de arrebatador cinema guerrilha que embarcamos nesta imprevisível viagem a bordo de um país a saque, num torvelinho de histórias que se entrelaçam e se sucedem de acordo com a lógica do cineasta.

Passamos pelo drama dos operários dos estaleiros de Viana do Castelo, montada em paralelo com uma praga de vespas assassinas de abelhas. Testemunhamos o caso do processo do galo que cantava a desoras, o desespero do desempregado visto de formas diferentes, mas sempre demasiado real para o pesadelo. Talvez por isso, o melhor tratamento fosse um acordar para a realidade com um banho gelado de 1 de janeiro.

Pelo que vimos, fica já a certeza do cinema urgente, sim, de guerrilha, devidamente filtrado pela sua experiência como crítico de cinema, o que lhe dá uma vantagem para saber o que funciona e o que não funciona na tela. Mesmo assim partimos para o próximo tomo, O Desolado de… pau feito. Por isso dizemos, “it’s (not) only rock and roll, but i like it!“.

O melhor: A forma como Gomes brinca com a realidade dando-lhe a espessura narrativa.
O pior: A duração do(s) filme(s) pode ser, por vezes, um desafio para o espectador que lê legendas.


Paulo Portugal

 

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