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«La tête haute» (De Cabeça Erguida) por Paulo Portugal

 

Cannes abre com a primeira nota de alguma irreverência, já que La tête haute (De Cabeça Erguida?), da atriz e realizadora Emmanuelle Bercot (iremos vê-la também em Mon Roi, de Maïwenn) bem poderia estar na competição. Valerá a pena contar ainda que Bercot participou em Polissia, o vigoroso filme de Maïwenn que passou por Cannes em 2011 e que tem necessariamente com este uma certa afinidade e até mesmo intimidade. A deriva de um delinquente juvenil vivido com intensidade rasga o lado mais convencional de uma abertura de um festival tão atraído pelo glamour como Cannes. Um sinal que se saúda.

Malony, numa avassaladora prestação de Rod Paradot, agora com 18 anos, vive aos dezasseis a euforia da delinquência, juntamente com a mãe, que o teve aos quinze e que ficou sem pai aos quatro. É com esse garoto de sete que o filme começa, captado por uma câmara inquieta que o fixa e se desinteressa do que se passa em seu redor, mas em que percebemos ser a forma como uma mãe incapaz de o segurar acaba por o depositar ali mesmo. Quando o voltamos a ver já Malony rouba carros para puro desfrute de fazer acrobacias, devidamente acompanhado pelo irmão mais novo e pela mãe, que grita GTA, GTA!, e que o incita a atropelar transeuntes.

Entre centros de reinserção social e encontros com a compreensiva juiz do tribunal de menores, interpretada com uma calma plácida por Catherine Deneuve, Malony hesita entre uma irresistível insaciabilidade temperada por crises de explosão. Pelo meio, vamos percebendo como funciona um sistema social francês onde se nota a existência de meios que incluem até sessões de massagem e terapia sensorial e instalações modelares no campo.

Apesar deste lado exemplar, La Tete em Haute tem o mérito de não ser um filme típico de mensagem social. Algo que o guião escrito numa parceria entre a realizadora e Márcia Romano, sabiamente evita levando-nos a encarar o sistema de reinserção social de uma forma inteligente, sem esquecer de deixar algumas pistas para o questionar. Apesar de não ser um filme típico feminino, essas marcas estão visíveis. Não só porque as mulheres do filme cumprem uma espécie de missão ou mesmo instinto maternal de ressocializar os homens, todos eles inacabados, incluindo mesmo o guia de Malony, Benoît Magimel. A única exceção será a da mãe de Malony, numa entrega convincente de Sara Forestier, provavelmente também ela um produto de um agregado disfuncional.

Apesar deste ser um filme que se assume de cabeça bem erguida, sente-se aqui e ali a forma algo condescendente, atrevo-me a dizer, feminino, como certos aspetos são resolvidos de uma forma, digamos, maternal. Incluindo o final que se desejava menos cómodo. Falamos por exemplo do lado disponível e paciente como é mostrada toda a instituição de inserção, onde os funcionários e guardas são atenciosos e compreensivos, mas também como pode ser encarada como uma forma alternativa ao calabouço. Talvez seja assim na região de Dunquerque, onde a narrativa se desenrola. Há ainda o lado otimista da relação entre a filha maria-rapaz que se apaixona por Malony e de quem acaba por adquirir um muito inesperado projeto de vida.

Enfim, temos uma obra bem intencionada que aborda o lado da delinquência, talvez com demasiada compreensão, e o lado da reinserção social, talvez com demasiada bonomia. Digamos que Jacques Audiard teria feito um filme bem diverso sobre a instituição. Ou Maïwenn. Bercot opta pelo lado da salvação pelo amor e a compreensão. Percebe-se, mas gostamos bem mais do lado visceral e brutal de Polisse.

O melhor – A energia credível de Rod Paradot a revelar
O pior – A condescendência imaculada como é mostrado o sistema de reinserção social.


Paulo Portugal