Quinta-feira, 28 Março

«L’enlèvement de Michel Houellebecq» (O Rapto de Michel Houellebecq) por José Raposo

O Rapto de Michel Houellebecq, um filme assinado por Guillaume Nicloux e ficcionado a partir de uma peripécia do autor de Submissão, é um filme rocambolesco. Por alturas da tour promocional de O mapa e o território, Houellebecq foi dado como desaparecido, incidente verídico que esteve na origem das mais diversas especulações: raptado pela Al Qaeda, suicídio, foram algumas das hipóteses mais comentadas. É este episódio que está na origem de “O Rapto…“, filme com falsas aparências de documentário, mas não é para contar essa história que Nicloux se resolveu debruçar sobre a figura de Houellebecq.

O propósito mais imediato de Nicloux consiste em prestar culto à personalidade mediática de um escritor insolente, tornando a obra num filme-veículo para Houellebecq, estrela de cinema e “troll” literário. A encenação do rapto em registo pretensamente documental tem o propósito fundamental de inscrever a aura de Houellebecq no domínio da pornografia, e o que ali se documenta é também um exercício de estilo – eis o génio maldito a reinar sobre o povo em estado bruto. O perfil dos raptores acentua o tom de paródia que paira sobre todo o filme: um é lutador, outro body-builder, e o chefe foi treinado pelo exército israelita (uma educação exemplar, comentará a dada altura Houellebecq a esse propósito). Apesar desta aparente conformidade, os raptores acabam por figurar diversos grupos: o público inculto e com curiosidade parola sobre o processo de criação literária, como quando um dos membros do bando se põe a fazer perguntas sobre a obra do escritor; ou enquanto pretexto para lançar farpas na direção dos editores, no episódio em que Houellebecq tem que alterar alguns detalhes de um poema que escreveu, sobre pressão do líder do grupo.

A confusão entre a realidade documentada e a imaginação pornográfica, não torna Nicloux num realizador particularmente sofisticado do ponto de vista conceptual, mas tem o mérito de trazer para primeiro plano aquilo que está em causa quando se fala em escândalo calculado. No caso de Houellebecq compreende-se que parte do seu charme deriva da apropriação genuína de um conjunto de poses escabrosas, que quando lidas à luz de uma obra de uma lucidez ofuscante, permitem fazer o retrato do escritor enquanto poseur do macabro. Já não existe Houellebecq para além da superfície porque o seu rosto é todo um romance: é para ser visto como quem lê.

Dos vários episódios desta performance, aqueles que saltam mais à vista são aqueles em que o espetáculo é mais deprimente, como aquele em que Houllebecq se lembra de defender a obra de Tolkien com uma bebedeira descomunal. A figura de palerma que o escritor faz de si próprio, ilustra de forma exemplar a ligação entre o documentário e a ficção levada a cabo por Nicloux, feita à custa de um exagero plástico e denunciado. A pornografia está nessa ligação, onde a transparência da “reality TV” se opõe declaradamente à hipótese do estilo individual de um artista poder corresponder a um universo próprio e autónomo.

O melhor: Michel Houellebecq.
O pior: Nada a apontar.


José Raposo

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