O registo das narrativas e o conceito de originalidade são conceitos recentes na História da Humanidade. Antes deles havia (e em alguns lados ainda há) uma forte tradição oral que se prolongou durante milhares de anos, com as histórias mais memoráveis a desenvolverem-se em detalhe e complexidade nas suas viagens geo-temporais. No Ocidente temos o exemplo de Homero, dos irmãos Grimm ou de Elias Lönnrot e basta pensar em contos como O Capuchinho Vermelho para reconhecermos este fenómeno.

O Oriente também tem os seus exemplos, alguns deles religiosos, outros, como este O Conto da Princesa Kaguya, meramente fantásticos (no sentido de ligados à fantasia, apesar de também se poder aplicar à qualidade de alguns). Este crivar pelo tempo faz com que estes contos contenham valores humanos que ultrapassam a cultura em que foram criados, apesar da constante exoticização do Oriente pelo Ocidente. “Apesar”, porque, nessa exoticização por vezes há um afastamento e um assumir de uma posição superior (mesmo que não de forma consciente) que impede esse reconhecimento. Tendo em conta esta relação problemática e a complexidade da produção cultural a nível massificado e global, só a sensibilidade de um autor como Isao Takahata poderia criar esta obra de arte que muitos anunciam, tendo em conta a sua idade avançada, como possivelmente o seu filme final.

O Conto da Princesa Kaguya relata a história de um cortador de bambu que encontra um dia, dentro de caule que brilhava de uma dessas plantas, uma criança do tamanho do seu polegar. Sem filhos e apesar de a reconhecer logo como realeza, o pobre cortador leva-a para a sua casa. Com o passar dos anos, a princesa cresce em tamanho e em beleza e o cortador sente a necessidade de lhe dar mais do que as suas posses lhe permitem. Outras viagens ao campo de bambu fornecem-lhe ouro e roupas para ele o fazer.

Mas o conceito de princesa e os preceitos sociais do Japão da altura revelam-se constrangedores para uma criança que cresceu (mesmo que muito rapidamente) no campo e o confronto entre a vontade de correr solta e de explorar o mundo com essas exigências sociais e nobiliárias (na personagem do pai que se vai transformando e de uma tutora que bem luta para a acalmar) vai aumentando. Mesmo sem aprofundar muito a sinopse, pode ver-se que aqui se debatem conceitos como a transitoriedade, a insatisfação, a vontade contra o dever, o crescer e tantos outros que Takahata recusa reduzir para conformar com a ideia de que as criancinhas não podem ou não sabem lidar com a sua complexidade.

Para além de uma história belíssima, a animação de Takahata é qualquer coisa maravilhosa de se ver. Se o seu parceiro/rival Hayao Miyazaki nos estúdios Ghibli (com quem já colaborou tantas vezes) tem um estilo em que os detalhes se multiplicam e enchem o ecrã, Takahata assume aqui um estilo muito simples. Ou melhor, enganadoramente simples. Até pode parecer por vezes que os desenhos foram feitos rapidamente a lápis sobre uma folha de papel e depois coloridos, mas as intersecções com elementos vegetais e as explosões de cor e textura surpreendem-nos e lembram-nos a longa história de amor do Japão com a caligrafia e as artes visuais. Sem cair numa imitação simples de tantas pinturas que foram sendo feitas para ilustrar este conto ao longo dos séculos, o estilo sem pretensões escolhido acaba por referênciá-las na sua riqueza e estética.

Este é um filme perfeito. Quer pelo seu conteúdo, quer pela utilização do meio, quer pela emotividade que é incluída nele. Não há aqui qualquer necessidade de assumir posições irónicas ou de afastamento. Takahata procura e consegue envolver-nos na crescente tristeza da princesa Kaguya e dos seus pais, fazendo com que, no final do filme, muitos olhos estejam marejados e que, como Fernando Galrito, o director artístico da Monstra gosta tanto de dizer, o filme comece mesmo no seu final, acompanhando-nos muito tempo depois.