Sexta-feira, 29 Março

«Cinderella» (Cinderela) por Jorge Pereira

A história de Cinderela e as suas variantes são bem anteriores à escrita e popularizada por Charles Perrault no final do século XVII. A sua intemporalidade multicultural resulta essencialmente no facto de retratar algo com que o mundo se identifica diariamente: a injustiça; a heroína perseguida*; a mulher terrena e humilde, repleta de valores, que se apaixona pelo “príncipe”.

A arte sempre aproveitou este conto para muitas das suas obras. Teatro, literatura, cinema, TV. Se pensarmos bem, na 7ª arte, e para além das adaptações diretas que já inundaram as salas de cinema e o pequeno ecrã, como o clássico de animação da Disney de 1950, filmes como Felizes Para Sempre (1967) e Um Sonho de Mulher (1990) estão ligados na sua orgânica a esta história, ou seja, a da mulher comum de classe mais baixa que se apaixona pelo príncipe galã. Pensando bem, e despindo toda a imagem sadomasoquista, Dakota Johnson tem algo de Cinderela no tão badalado As 50 Sombras de Grey.

Tudo isto para dizer que com tantas obras diretamente ligadas ou derivativas do famoso conto, esperava-se mais de uma megaprodução da Disney que uma simples revisão do ponto de vista técnico. Sim, compreenda-se que esta versão em imagem real de Cinderela é tecnicamente superior, uma verdadeira delícia para os sentidos na sua cenografia e guarda-roupa. Quanto à narrativa, nada de novo. Apenas e só o que já vimos nos vários filmes em torno da personagem. Tudo é apenas mais bonito e com melhores meios de produção. 

Se é verdade que isto é positivo no sentido de se tratar de uma boa homenagem que mantém o espírito essencial do conto, é também certo que a previsibilidade torna toda a experiência enfadonha, pois pese embora se tente demonstrar um conflito na narrativa, sabemos como tudo vai acabar: com uma dose bem açucarada do “vivem felizes para sempre” e sem surpresas.

No campo das interpretações, Lily James cumpre bem o seu papel de donzela injustiçada, mas é a madrasta Cate Blanchett e a fada madrinha Helena Bonham Carter que roubam todas as cenas. Já o príncipe (Richard Madden) é demasiado inconsequente e as irmãs velhacas um mero cliché (onde não falta o seu gato mau).

Essencialmente, é pena ver onde o “shakespeariano” Kenneth Branagh chegou. Não há aqui um único toque verdadeiramente seu. Tudo é plano e pré-formatado. Isto só prova que o britânico se tornou num dos cineastas mais obsequentes do cinema atual.


Jorge Pereira

* Termo utilizado segundo o sistema de Aarne-Thompsom, usado para classificar contos

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