“Poderás tirar com anzol o Leviatã, ou apertar-lhe a língua com uma corda?” 41:1 Jó. Em termos bíblicos, o Leviatã é uma raça de seres que povoaram a Terra muito antes dos anjos ou qualquer outra criação de Deus. Estes foram descritos como ferozes criaturas marinhas de um porte colossal. Mais tarde essa figura mística serviu de base para um maiores livros sobre filosofia política, escrito por Thomas Hobbes durante a Guerra Civil Inglesa. Nesses escritos, o autor defendia um contracto social, ou seja, um Estado detentor de um poder político absoluto, segundo este, a única ideologia estadística capaz de evitar uma guerra civil (bellum omnia omnes, eterna luta de todos contra todos).

Passados 300 anos, o consagrado realizador de Elena, Andrey Zvyangintsev, proclama os direitos de imagem da “criatura” para se lançar num protótipo das ideias de Hobbes, relançando as consequências que tais pensamentos poderiam gerar. Mas acima de tudo com Leviatã, o cineasta envolve a Rússia num regresso ao regime social de épocas há muito prescritas, onde o dito poder absoluto é dividido por três sectores (politico, clérigo e jurídico). São três frentes avançadas para ilustrar uma Rússia corrompida, ambígua e “lavada” em pessimismos profundos.

A história desta obra, que tem recolhido elogios, bem como iras, remete-nos ao confronto desigual entre Koyla (Alexey Serebryakov), que vive com a sua família numa habitação na costa do Mar de Barents (Oceano Glacial Árctico), e um corrupto Presidente da Câmara (Roman Madyanov), que anseia adquirir o terreno destes a qualquer custo. No seio deste “combate” judicial, Koyla, desesperado, pede auxílio ao seu velho amigo de Moscovo, que exerce o cargo de advogado, e tem na sua posse uma “arma secreta” contra o dito político. Eis um cenário onde nada nem ninguém poderá sair ileso, perante a controlada agressividade que Zvygintsev explora as falhas do sistema absoluto russo e da corrupção que não parece ser apenas digna dos “grandes”.

Aliás, o cineasta acrescenta um toque satírico e absolutamente irónico ao seu conjunto de negras personagens e às situações, algo caricatas, as quais se envolvem. São pequenos ensaios sociais onde Leviatã salienta a sua força de crítica, acrescentada com um trabalho dinâmico nos diferentes teores técnicos. Zvygintsev é seguro na sua realização, a sua câmara flui graciosamente por entre a narrativa, motivado pela ansiedade e exaltação deste biótopo adensado não só pelo crime capital, mas pela redundância da alma humana (destaque para a fotografia de Mikhail Krichman). É ambientes como estes que nos fazem “rezar” por tais monstros lendários, demónios viventes do profundo oceano que nos apelam às nossas preces, simbolizadas em cetáceos, cujas presenças são maus presságios. Por duas vezes esses grandes animais ostentam uma aura de espiritualidade na narrativa, porém, a sua inserção é sucedida pelos piores cenários de um enredo que gradualmente se converte numa epopeia à infelicidade sobre gerações órfãs que renegam o seu Passado.

Sente-se ainda uma forte componente de resistência para com as doutrinas religiosas. A devoção que parece sufocar uma comunidade e o espirito humano é uma versátil capa que contrafaz antagonistas e as emancipa de castigos divinos por parte de um só Deus. “Todo o Poder vem de Deus” afirma constantemente o sacerdote ortodoxo quando lança o sermão sobre a fé incontestável de uma Força Maior ao seu mais leal súbito. O monoteísmo dessas ações que tão presente se encontra na sonoplastia, principalmente nos primeiros e últimos minutos de fita, o mar violento e desconhecido coreografado ao som operático de Philip Glass, Aknaten, em homenagem ao faraó que governou o seu império com um regime monoteísta. Evidentemente, Leviatã é uma obra profundamente provida por simbolismos. Porém, será que essa mesma imensidão alegórica prejudicável ao retrato realista desta Rússia conspurcada?

Pontuação Geral
Hugo Gomes
leviathan-leviata-por-hugo-gomesO melhor – A técnica de Zvygintsev e os seus alicerces. A densidade simbológica da obra e o humor sarcástico invocado. / O pior – existe nele um pessimismo quase martirológico