Sexta-feira, 19 Abril

«1,000 Times Good Night» (Mil Vezes Boa Noite) por Hugo Gomes

Enquanto nos encontramos no conforto do nosso lar, na nossa bolha, o Mundo lá fora é devastado por conflitos e desumanidades cometidas sob o olhar de todos. Mas será que nos preocupamos com o “resto”? Somos cada vez mais individualistas, constantemente sucumbidos aos nossos egos e, pior, convertemos-nos em extremos egoístas. A sociedade em que vivemos é propícia a esses factores e, mais uma vez, utilizando o “bode expiatório”, os órgãos de comunicação social banalizam os conflitos, simultaneamente aproximando-nos e revelando-nos, através desse “simulacro”, a segurança dos nossos respetivos lares. Vislumbramos essas guerras, essas causas perdidas para a ONU e outras organizações de defesa dos direitos humanos através de uma janela, de um ecrã ou até num pedaço de papel. Por isso, como é possível não nos sentirmos seguros?

Hotel Ruanda, o filme de Terry George, aborda um dos maiores massacres que a Humanidade testemunhou em pleno século XX, mas que o mundo simplesmente ignorou. Numa das sequências desse filme, a personagem de Don Cheadle, um homem sensibilizado com os horrores que presencia, agradece a um grupo de repórteres pelas filmagens reveladoras concretizadas naquele dia, com a esperança de que estas possam abrir os olhos das grandes potências. Entre os repórteres encontramos Joaquim Phoenix, o qual responde acidamente ao agradecimento de Cheadle: “Eu penso que quando as pessoas virem estas filmagens vão dizer – oh meu Deus, isto é horrível – e depois voltam a comer as suas refeições”. É triste, mas é a realidade.

Mil Vezes Boa Noite, do norueguês Erik Poppe (o realizador do muito interessante Águas Agitadas), incute a mesma mensagem através de uma fotógrafa de guerra (Juliette Binoche) que arrisca a sua vida, vezes sem conta, para conseguir aquela foto predileta. Com o intuito de “acordar o Mundo” para a realidade que vivem, a personagem de Binoche parece atender a uma espécie de chamamento no contacto com a tragédia social. Existe mesmo uma cena em que a protagonista exibe à sua filha mais velha (aqui interpretada por Lauryn Canny) algumas das fotos da sua autoria captadas no Congo, ao mesmo tempo que explica a sua revolta ao desprezo pela falta de sensibilidade em relação a estas barbáries, exemplificado que o Mundo se preocupa mais com a falta de roupa interior da Paris Hilton do que com as milhares de crianças que são massacradas diariamente por conflitos quase desconhecidos.

Em Mil Vezes Boa Noite existe a intenção nobre de transportar um aparente telefilme para territórios mais profundos. Contudo, é o seu tratamento que o impede de se tornar em algo mais incisivo e pertinente. O palco bélico e as emoções trazidas pelos horrores roçam o pastiche e o artificial. Nem sequer Binoche é capaz de entregar uma personagem mais envolvente e humana, demonstrado apenas que África parece não querer largar a atriz.

Assim, temos um dramalhão de família sobrevalorizado nos dilemas da integridade do fotografo, do papel dos medias nestes conflitos e a própria exploração da fotoreportagem de guerra. O mais descarado é que o filme parece reconhecer esses pontos, mas falta-lhe coragem para avançar com eles. Tendo em conta o final cínico e diabolicamente irónico, ficamos convictos de que Mil Vezes Boa Noite possuía panos para mangas, mas ficou-se por ai.

O melhor – os rasgos de crítica social que parece inserir
O pior – todo o pastiche e o formato telefilme com direito a dramas demasiado familiares


Hugo Gomes

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