Num ano em que discriminação racial voltou a encher capas de jornais com o caso de Michael Brown, em Ferguson (Missouri, EUA), foi lançado nas salas norte-americanas o filme Selma, um relato do ano turbulento de 1965 na pequena localidade do Alabama, região onde os movimentos dos direitos civis, conduzidos por Martin Luther King, procuraram garantir o direito ao voto por parte dos negros, isto numa América que já tinha escrito nas suas leis o fim de toda e qualquer discriminação racial, mas que – principalmente – o Sul teimava em não seguir.

Apesar do filme procurar focar-se nos eventos decorridos em Selma, a figura de Martin Luther King é indissociável da história e sobressai como o principal visado de toda a fita, não sendo raras as vezes em que esta cai nos procedimentos padronizados das cinebiografias modernas, ou seja, na típica linearidade cronológica da narrativa, o didatismo exagerado e até na básica e frequente presença de datas e personagens históricas com pouca importância para o enredo (faltaram os flashbacks e ainda bem). Veja-se o caso da curta aparição de Malcom X, apenas e só para explicar ao espectador as discrepâncias que teve com King (resumindo-se quase o seu papel aqui como aquele «radical» que o presidente dos EUA desprezava, razão pela qual fortaleceu o movimento de King ao preferir «negociar» com ele), ou de J. Edgar Hoover, com um papel minúsculo, simplesmente com um par de frases que demonstra o seu repúdio a King, sugerindo mesmo a Lyndon Johnson – segundo o argumento desta fita – que o FBI o podia fazer desaparecer.

Para além disso, outros truques frequentes no género das biopics são utilizados para nos aproximar do biografado, como os frequentes close-ups, a utilização de frases e discursos feitos e alguns maneirismos pessoais. Embora tenha causado alguma celeuma inicial o facto de se ter escolhido um britânico para o protagonismo desta obra, David Oyelowo cumpre o seu papel sem cair no overacting ou na excessiva demanda em copiar na perfeição quem está a retratar. O ator, que já tinha trabalhado com Ava DuVernays em Middle of Nowhere (2012), balanceia na sua atuação os seus elementos pessoais com os de Luther King, tendo assim uma prestação raramente artificial e profundamente carismática.

Para além disso, este King revela constantemente uma intranquilidade, até porque o pastor e ativista encontrou na sua demanda estratega a muitas dúvidas de como proceder perante a escalada dos eventos, não só politicamente, mas até intimamente, na sua relação com a companheira. Ora é neste ponto que surgem grandes conquistas, mas também reside um dos maiores problemas de Selma: a sua relação com a esposa é algo que indiscutivelmente acrescenta densidade no que diz respeito ao estudo da personagem (valoriza o tom biopic do filme), mas que, por diversos momentos, quebra o ritmo da ação e dos acontecimentos na pequena localidade e o impacto destes em toda a América.

Ainda no campo dos atores, convém aqui fazer duas ressalvas e que vão em oposto à atuação de Oyelowo: quer Tim Roth, como o governador do Alabama, quer Tom Wilkinson, como o presidente dos EUA, surgem por diversas vezes como caricaturas das figuras que retratam, ganhando  o filme alguma artificialidade que era preferível evitar.

Mas não se enganem nestes apontamentos menos positivos. Selma tem bastantes trunfos e DuVernays revela frequentemente um pulso e uma incisão avassaladora atrás das câmaras, como no caso do atentado terrorista que vitima um grupo de crianças, no assassinato de um jovem negro que protestava, na apresentação de um espancamento a brancos que viajaram até Selma para participar na marcha pela igualdade, para já nem falar da impactante primeira incursão dos manifestantes a caminho da capital do Alabama. Estes são os momentos mais marcantes e sem dúvida aqueles que revelam as maiores qualidades da cineasta e do filme – que se revela essencial nos tempos que correm, pois ainda há muito para fazer para que o sonho de Luther King se concretize.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
selma-por-jorge-pereira Selma tem bastantes trunfos e DuVernays revela frequentemente um pulso e uma incisão avassaladora atrás das câmaras