Quinta-feira, 28 Março

«Whiplash» (Whiplash – Nos Limites) por Tiago Figueiredo

 

Existe uma ideia corrente nalguns corredores de conservatórios de música que garante que a genialidade de um músico se deve a 5% de inspiração e 95% de transpiração. Apesar da chalaça ser atribuída a Thomas Edison, é frequente ouvi-la citada em nome do compositor alemão Beethoven para dar ao argumento a devida autoridade musical.

Agarrada a esta ideia, vem outra que é também uma receita antiga dos métodos pedagógicos da velha guarda. A resiliência separa o trigo do joio. Criar pressão psicológica, levar ao limite a resistência física e emocional dos jovens aprendizes, faz deixar pelo caminho aqueles em quem não vale a pena apostar, dando luz aos verdadeiros génios, como quem separa pepitas de ouro do saibro num rio.

É esta a ideia que está por trás de Whiplash – Nos limites. Andrew (Miles Teller), 19 anos, estudante de bateria, entra na melhor escola de Jazz de Nova York. Uma das cadeiras de big band é regida por Fletcher (J.K. Simmons), cujo método pedagógico consiste sobretudo em aterrorizar os alunos com gritos, ameaças, humilhações ou agressões. Para sustentar o modelo pedagógico, é repetidamente contada a história de Charlie Parker, ainda jovem, quase ficar decepado quando numa jam session o baterista Jo Jones lhe atirou um prato da bateria. Alegadamente, Charlie Parker lutou contra a humilhação fechando-se em casa a estudar arduamente e reapareceu um ano depois deixando todos rendidos ao seu talento. Fletcher conta a história para dar uma aura de inevitabilidade e justificação quando esbofeteia Andrew num ensaio para lhe ensinar ritmo, ou quando usa os detalhes da vida familiar que ouve do aluno num momento de descontração para o humilhar em frente aos colegas. Andrew aceita as provações como parte do processo, deixando-se mergulhar no pântano depressivo em que tantos alunos de música definham. Incompatibiliza-se com a família, rompe com a namorada, fecha-se em casa a estudar massacrando-se fisicamente como um atleta chinês a preparar-se para os jogos olímpicos.

Não se fala de música, não se respira som, não se desenvolve uma personalidade artística que transpareça na música de Andrew. A apologia é a da dor, do esforço e do sacrifício. Não existe ensino nem qualquer processo de aprendizagem digno desse nome. Existe apenas pressão, bullying e sadismo. Fletcher é o Sgt. Hartman de Full Metal Jacket (Nascido Para Matar).

Mas nenhuma baqueta lhe trespassa o peito. Depois do clímax do filme, vemos um Fletcher sem arrependimento dizer “Nunca tive realmente um Charlie Parker. Mas tentei. Tentei mesmo. E isso é mais do que a maioria das pessoas faz”, para a seguir acrescentar que a pior coisa que se pode fazer a um artista é dizer-lhe que fez um bom trabalho.

É este o gigantesco e cruel erro de Whiplash, acreditar que o perfeccionismo artístico advém do medo e de um processo humilhatório e não de uma procura intrínseca ao indivíduo. Como filme, a obra até funciona durante grande parte do tempo. Tem bom ritmo, tem bons atores, tem uma construção relativamente bem cuidada, está bem filmado. Como manifesto pedagógico e pedagógico é lamentável. Haverá muito psicopata por essas escolas fora que verá em Whiplash um sedutor incentivo para o seu método. Para quem foi vítima deste “método”, ver Whiplash é uma experiência penosa.

O melhor: As representações de J.K. Simmons e Miler Teller
O pior: A filosofia que acaba por vingar no filme.


Tiago Figueiredo

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