Sábado, 20 Abril

«Blackhat» (Ameaça na Rede) por Hugo Gomes

 

Num encontro entre argumentistas decorrido em setembro do ano passado, o produtor e argumentista James Schamus afirmou que atualmente “Hollywood deixou de fazer filmes para americanos, mas especializou-se em se centrar no mercado dos jovens chineses, face ao fenómeno que tem sido gradualmente evidente nas grandes produções hollywoodescas. Esta preocupação tem sido demonstrada num lisonjear à cultura em causa, na inserção de personagens de tal nacionalidade e na intriga – mesmo sendo inúteis para a produção, são criadas sequências exclusivas para a versão chinesa (como foi o caso do terceiro Iron Man) ou a ação passa por território chinês. Neste último caso, o exemplo mais descarado foi sem duvida o quarto Transformers, com Michael Bay a direcionar metade da sua intriga para Hong Kong, somente com fins comerciais na mente. Resultado? Um estrondoso êxito de bilheteira.

Para o leitor, todo este cenário é pura heresia, pois comparar Michael Bay com Michael Mann deveria ser considerado uma tremenda punição. Mas a verdade é que até mesmo o realizador do muito engenhoso Heat: Cidade sob Pressão parece ter-se entregado a este mesmo processo. Blackhat: Ameaça na Rede apresenta-nos uma temática moderna sobre os perigos da informática e das redes cibernéticas. É uma obra sobre tecnologia e as consequências dessa mesma tecnologia para a sociedade, cada vez globalizada e dependente destes meios. No centro disto, encontramos um novo tipo de crime, golpes que não são mais executados com a precisão da mira, mas sim sob códigos de computação e o uso do teclado. Nesta transição da velha escola para os tempos sofisticados de hoje, é curioso ver Mann a abandonar parcialmente os grandes tiroteios e os bandidos quase a roçar o velho oeste para se entregar uma nova corja de bandidos.

Contudo, mesmo sob este novo cenário, o nosso autor conserva as suas marcas:  continua a filmar a noite citadina como ninguém ou o metro como refugio pós-climax, mas a sua mais interiorizada imagem de marca é a forma com que aborda a complexidade das relações debaixo das “barbas da lei”, novamente citando tragédias gregas ou amor platónicos “à prova de bala”. O mesmo se pode dizer dos seus anti-heróis, que evidenciam uma descrença de Mann em personagens sociopatas, preferindo ligações humanas. Nesse sentido, visualizamos o mesmo retrato do crime cometido pelo mesmo “pintor” e, neste caso, temos umas das suas “pinturas” mais dececionantes, pelo menos a que reúne as personagens mais vazias da sua carreira (mesmo valendo o esforço de Viola Davis). O desfecho é prova disso. A montanha pariu um rato e o velho Michael Mann demonstra pela primeira vez cansaço.

E é pena, porque longe dos olhares menos discretos do cariz comercial da obra, Blackhat reserva-nos momentos interessantes do panorama atual do cinema de ação norte-americano. Não é todo os dias que vemos o protagonista a invadir com êxito os sistemas informáticos da NSA (será um espectro vingador de Edward Snowden?) ou Chris Hemsworth a entregar-nos a sua melhor composição cinematográfica.

No final, temos assim um descuido do autor, mas ainda assim recheado de pontos de interesse e com o selo Michael Mann.

O melhor – Nem tudo é desperdício
O pior – a obra menos certeira de Michael Mann e a mais forçada a decisões comerciais


Hugo Gomes

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